Vidas negras importam, mas desde que estejam longe daqui

Senta que lá vem...

  • D
  • Da Redação

Publicado em 21 de junho de 2020 às 08:37

- Atualizado há um ano

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Pouco a pouco, Facebook se tornou obituário. Pela rede social, vou me informando da morte das pessoas próximas aos meus amigos e amigas. A COVID-19 está próxima.

Poucos dias atrás, vi que Hamilton Borges, da organização “Reaja ou Você Será Morto/ Morta”, postou imagem que simboliza o luto. Eu tenho imenso respeito por Hamilton e pela “Reaja”. Eu o admiro pela luta, pelo talento, pela raiva direcionada. Sempre com endereço correto. Hamilton fala bem, com propriedade. Palavras justas de indignação, de revolta, mas também de muito afeto. “Sou alguém que nunca fugiu ao embate”, já o escutei falar. É verdade. Figura justa, verdadeira.

Eu mandei mensagem pelo zap. Ele confirmou que uma pessoa muito próxima a ele morreu de Covid-19. Sentiu-se mal na sexta ao meio-dia. Hospitalizado no final da tarde e enterrado no sábado pela manhã. Pouco mais de 60 anos.

Hamilton estava transtornado. Além da dor pela morte do familiar, pairava a revolta pelo assassinato de Micael Silva Santos, 12 anos. O menino saiu para empinar pipa no Vale das Pedrinhas e foi morto pela polícia. Hamilton me mandou um curto vídeo do enterro do menino. Três, quatro pessoas, poucos minutos para a despedida. Uma dor dilacerante, indignação insuportável, revolta que jamais será calada. Mãe e pai, vivos para clamar por justiça.

Maurício dos Santos Menezes, o pai de Micael, relatou ao CORREIO que o garoto correu da polícia, que chegou ao bairro atirando. ”Todo mundo viu a hora que meu filho foi atingido. Uns disseram que um dos policiais chegou a mirar nele. Meu filho foi tirado pelos policias de uma casa onde foi pedir socorro já morto. Antes de jogaram o corpo dele na viatura como um animal abatido, exibiram o corpo dele como um troféu”, contou. Diversos moradores confirmaram a versão da família, que está obviamente dilacerada. Para essa doença, como se disse, o país está longe da cura. A vacina para o Covid-19 vai chegar primeiro.

“Eles estão assumindo o esquadrão da morte”, me disse Hamilton. “Não tem jeito, a gente vai ter que enfrentar. Vamos nos reunir para exigir que as autoridades respondam. Não dá para deixar dessa forma.”

Em nota, a Polícia Militar diz que “Houve troca de tiros e, ao cessar os disparos, os policiais encontraram um menino de 12 anos atingido, que foi socorrido para o Hospital Geral do Estado, onde não resistiu aos ferimentos.  No local onde houve o confronto, a guarnição encontrou ao solo um revólver calibre 38, duas porções de crack e de pasta base para cocaína, 50 pinos de cocaína e 17 trouxas de maconha”. Insuportável essa conduta. Estamos todos afundando em sangue.

Nos EUA, os policiais que mataram Floyd foram presos após forte comoção nacional. Aqui, nem comoção muito menos prisão. Não teve hashtag em nome de Micael, nada. A nossa indignação ficou nos EUA. “Vidas negras importam, mas desde que estejam longe daqui”. A sociedade baiana caminha entre a apatia, impotência e covardia diante do genocídio do povo preto.

A palavra de ordem é “Defund”. A idéia é tirar o dinheiro da polícia e colocar em projetos sociais beneficiando a população em situação de risco. Promover educação, saúde, arte, cultura e esporte em vez da repressão, dos assassinatos em série. A polícia nos EUA começa a ser reformada. Precisa ser modificada. Continuar da mesma forma é compactuar com uma lógica assassina.

No Brasil, já se falou muito em desmilitarizar a polícia. Mas, há um comércio extremamente lucrativo que une polícia e política, além de interessar boa parte da sociedade. Nas próximas eleições, “as pessoas de bem” vão exigir mais polícia. Entre a burrice e a insensatez, estamos em queda livre.

Mesmo durante a pandemia, Hamilton e membros da “Reaja” vão à luta. “Se acontecer algo comigo deixo essa mensagem com registro de que sabemos que a PM em Salvador lucra com o tráfico e com as mortes”, ele me escreveu. Há dignidade nesse atoleiro.

Mas, Brasil acabou. Apenas esqueceram de enterrar. País escroto, elite racista, mesquinha, classe média covarde. O símbolo nacional é o caixão.

*Cláudio Marques é diretor e roteirista de cinema

Texto originalmente publicado no Facebook e replicado com autorização do autor