Vimos que a nova onda de covid-19 chegaria. Por que não nos afastamos dela?

Pandemia evidencia realidades e respostas desiguais; brasileiros precisam enfrentar a desconfiança

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  • Thais Borges

Publicado em 16 de janeiro de 2022 às 06:56

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Paula Fróes/Arquivo CORREIO

Você piscou e, de uma hora para outra, estava todo mundo com covid-19. Só que não foi tão ‘de uma hora para outra’ assim. Pelo contrário: desde o final de novembro, os cientistas já alertavam para uma nova variante - a Ômicron - considerada muito mais transmissiva do que tudo que se tinha notícia até então. 

Ela veio fazendo estrago por onde passou - da África do Sul, onde foi sequenciada primeiro, em novembro, ao Reino Unido e Estados Unidos, onde fez subir as internações. Em algum momento, chegaria aqui. Mas não mudamos nada; pelo contrário. Mantivemos festas e passamos a cada vez mais andar por aí sem máscara. Por que não aceitamos os avisos? 

Se por um lado é possível fazer uma relação com o filme ‘Não Olhe Para Cima’, lançado em dezembro pela Netflix, por outro, os brasileiros ficaram no escuro. No filme, dois cientistas descobrem que um meteorito está prestes a se chocar com a Terra e precisam alertar a população. No caso da Ômicron no Brasil, havia o alerta dos países por onde ela já tinha chegado, mas praticamente não existiam dados que mostrassem a situação aqui. No mês passado, o Ministério da Saúde foi alvo de um ataque hacker que desestabilizou as principais bases de dados do órgão. 

Com sistemas instáveis ou impossíveis de serem acessados, gestores e pesquisadores não tinham noção do problema em tempo real.“Quando vimos casos surgindo na Europa e nos EUA, poderiam ter tomado medidas preventivamente”, reforça o infectologista Fernando Badaró, professor da Unifacs.Ao mesmo tempo que as autoridades mantinham as flexibilizações, as pessoas continuaram com suas programações de fim de ano. "Vendo a situação hoje, eu teria ficado em casa", diz a designer Renata*, 44 anos, que passou o Réveillon com dois amigos, sem máscara, em uma pousada em Arraial D’Ajuda. Na época, com os três vacinados, não se sentiu insegura. "Mesmo sabendo que eles, teoricamente, não estavam contaminados, havia todo o entorno, as outras mesas, pessoas circulando". Quando retornou de viagem, começou a ver relatos de pessoas infectadas. "Tenho evitado sair de casa desde então", conta. 

Desigual Ainda que a pandemia afete a todos, não se deve esperar que todas as pessoas reajam da mesma forma, como ressalta o sociólogo Leonardo Nascimento, coordenador do Laboratório de Humanidades Digitais da Universidade Federal da Bahia (Ufba). “Imaginar que todas as pessoas têm acesso à informação e vão estabelecer uma relação de causalidade entre usar máscara e não pegar a doença é um equívoco. É esperar muito de uma sociedade desigual. É muito difícil as pessoas pensarem o mundo do ponto de vista biomédico". O próprio ciclo de tempo da covid-19 acaba sendo um desafio, inclusive para os gestores, como prefeitos e governadores. "A aglomeração acontece agora, no Natal ou no Ano Novo, e os sintomas só vão começar em 15 dias. Esse prazo faz com que as pessoas desconectem as coisas. Nesse meio tempo, tem um aumento da contaminação", analisa. 

Para o professor, a colaboração da população com a sitação sanitária em outros países não é tão boa quanto no Brasil. Mesmo assim, há uma cultura de acreditar que o que vem da Europa ou dos Estados Unidos é mais civilizado. 

"Na Europa, hoje, as pesoas usam menos máscaras do que aqui. As pessoas não se vacinam. Em termos comparativos, o Brasil está dando um show de comportamento sanitário. Óbvio que ainda tem problemas, porque as pessoas estão usando menos máscaras, por exemplo", pondera. 

Há, ainda, a influência da polarização política no país. Isso se conectou a uma postura de gestores maiores, como o próprio presidente da República, Jair Bolsonaro, e o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga. Em diferentes momentos, eles questionaram a pandemia e a eficácia das vacinas. 

"Tem um processo de descredibilizar a ciência e as vacinas que está presente nessas pessoas. Isso deixa sequelas ruins porque você está tendo conflito em todos os espaços da sociedade por conta disso. O tecido social está muito tensionado", acrescenta. 

Confiança Não basta recorrer ao clichê de que brasileiros não seguem regras ou sempre buscam o “jeitinho”, como pondera o psicólogo Tiago Ferreira, professor do Instituto de Psicologia da Ufba e especialista em Análise de Comportamento. 

Seguir regras depende de uma estabilidade das pessoas ou das instituições que as determinam. Ou seja: pessoas que nasceram numa família que costuma respeitar determinadas normas provavelmente vão aprender a segui-las porque boas consequências virão disso. “Mas quando vivemos em uma comunidade em que podemos seguir as regras, mas as pessoas que as estabelecem não necessariamente vão corresponder com boas consequências, precisamos aprender a funcionar de uma forma mais flexível”, explica. No contexto maior, existe, ainda, um problema de confiança. Historicamente, os brasileiros aprenderam a não confiar nas autoridades - ou a desconfiar primeiro. “Nós aprendemos a viver numa sociedade de desconfiança em que a palavra do outro, seja autoridade ou não, não é aquilo que deve reger minha vida inteiramente”, diz o professor. 

Esta semana, um estudo do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) divulgado pelo jornal O Estado de S. Paulo revelou que brasileiros e latino-americanos confiam menos nas pessoas do que o restante do mundo. Segundo a pesquisa, essa desconfiança contribuiria para o baixo desenvolvimento econômico e social da América Latina. Se o índice dos latinos é baixo - 12,6% -, o dos brasileiros é ainda pior: só 4,69% da população acredita nos outros. 

“Não necessariamente as pessoas são melhores seguidoras de regras, mais obedientes. Mas quando você vive num país em que as estruturas políticas e institucionais funcionam perfeitamente, seguir regras é quase uma derivação necessária disso. Mas quando precisamos dar um jeito por nossa conta para sobreviver, seguir regras não é tão apreciado assim”. 

*Nome fictício