‘Você não pode odiar o que não conhece’, alerta filha de ialorixá Mãe Gilda

Religiosa infartou após ser chamada de "macumbeira charlatã" em jornal da igreja

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  • Gil Santos

Publicado em 21 de janeiro de 2019 às 19:07

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Mauro Akin Nassor/ CORREIO

Há 19 anos, a ialorixá Mãe Gilda dos Santos, do terreiro Ilê Axé Abassá de Ogum, em Itapuã, teve um infarto fulminante. Ela morreu pouco depois de ver uma manchete com a foto dela no jornal Folha Universal, da Igreja Universal do Reino de Deus, que a chamava de "macumbeira charlatã". Era 21 de janeiro de 2000.

O fato aconteceu dois meses depois do templo ser invadido e depredado. Sete anos depois, o Congresso Nacional aprovou e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei nº 11.635, de 27 de dezembro de 2007, que criou o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. O marco ficou sendo justamente a morte da religiosa.

A Igreja Universal foi processada e condenada a pagar R$ 1,372 milhão de indenização à família da líder religiosa, referente a R$ 1 por jornal veiculado. Em um processo que ficou 10 anos em curso, a igreja recorreu e conseguiu reduzir o valor para R$ 600 mil. Depois, a Justiça concedeu uma nova redução, desta vez para R$ 150 mil. Com os juros e correção monetária, os sete herdeiros de Mãe Gilda receberam cerca de R$ 260 mil - cerca de R$ 36 mil por filho.

Nesta segunda-feira (21), o CORREIO conversou sobre intolerância religiosa com a ialorixá Mãe Jaciara Ribeiro, filha de Mãe Gilda e chefe do terreiro. A entrevista aconteceu durante as celebrações na Pedra de Xangô, em Cajazeiras X. Confira:

Qual a importância dessa data? Para mim, existe uma importância religiosa enquanto ialorixá do Ilê Axé Abassá de Ogum e, pessoal, por conta da morte de minha mãe biológica. Ela teve o terreiro invadido e a imagem maculada pela Folha Universal do Reino de Deus, com a matéria ‘Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida de clientes’. Mãe Gilda teve um infarto fulminante no dia 21 de janeiro e veio a óbito.

A senhora tem algum hábito ou ritual no dia 21 de janeiro? O Abassá de Ogum acorda celebrando o Ogum de Mãe Gilda. A gente faz referências chamando ela e cantando através de Oyá, porque Mãe Gilda não morre, ela se torna num alicerce para a nossa luta. Mãe Gilda era uma mulher guerreira, uma mulher de Ogum, e o ano de 2019 está pautado na essência de Ogum. A gente quer que ele nos proteja e nos empreste o escudo e a espada dele para que possamos seguir firmes e não tombar.

Quais os efeitos do preconceito? Tem muita gente morrendo, não só pela morte física, mas também a intelectual, a mental. O racismo deixa as mulheres, homens e jovens doentes. A criança, quando procura a escola e a professora é evangélica, muitas vezes é demonizada. Há uma forma muito ruim de fazer esse ódio crescer, que é a banalização. É cultural tratar o outro mal, é cultural invadir terreiro. As pessoas precisam entender que essa é uma questão de respeito.

Hoje é um dia para festejar? Pra mim, hoje não é um dia de celebrar, até porque faz 19 anos da morte dela e 12 anos dessa lei, e a gente vê que os casos de intolerância religiosa continuam crescendo. Por mais que a gente tenha o poder público atento, que esteja na Constituição que o estado é laico, na prática, estão faltando, ainda, ações mais efetivas que coíbam esse ódio religioso. A gente teve, recentemente, um terreiro que foi invadido por ladrões. O babalorixá da Casa do Mensageiro teve sua face machucada, além de toda a violação do sagrado.

Houve algum avanço nesses 19 anos? O avanço que eu vejo é um pouco da sensibilidade dos poderes públicos. A gente tem a Secretaria de Reparação, a Sepromi (Secretaria De Promoção Da Igualdade), que faz ações. A gente tem o Centro de Referência de Combate ao Racismo Nelson Mandela, que termina dando um diagnóstico do que está acontecendo. Temos esse amparo, mas acredito que o avanço maior é a denúncia.

Segundo a Sepromi, em 2018 foram registrados 47 casos de intolerância religiosa na Bahia, a maior quantidade dos últimos cinco anos. Qual o motivo de tanto preconceito? Além da falta de tolerância e amor ao próximo, é também falta de informação. Você não pode odiar e não gostar do que você não conhece. A saída é a educação, através da educação a gente pode transformar muito. As pessoas precisam saber o que é candomblé. Candomblé é uma religião linda, é uma religião como outra qualquer. A gente cultua a força da natureza, a gente não cultua diabo. A gente não faz o mal, o mal está no ser humano. Tem pessoas boas no Candomblé e pessoas negativas, assim como nos seguimentos neopentecostais, por exemplo.

Qual a importância de denunciar esses casos? A denúncia é importante para constatar o índice (de intolerância), para observar se ele está crescendo. A gente tem que usar o Disque 100, o Dique Racismo, e procurar o Centro de Referência. Quando tiver o terreiro invadido ou sentir que está sendo violado o seu direito enquanto cidadão, enquanto religioso, tem que denunciar, tem que ir na delegacia e dar queixa. Mesmo que o delegado ou o escrivão não nos entendam, a gente tem que procurar o nosso direito.

Esse é um espaço especial? A Pedra de Xangó é a extensão das nossas casas. Estamos aqui hoje fortalecendo a caminhada da paz que acontecerá aqui no dia 10 de fevereiro. Mãe Iara é uma líder na comunidade que tem pautado muito isso, mas acredito que ainda é muito pouco. São avanços, mas a gente não precisava estar aqui pedindo reparação. Reparação é a gente estar vivo e conviver com o outro irmanado.

Qual a mensagem que a senhora deixa neste dia? Esse é um ano difícil, onde os líderes políticos estão envolvidos com a falta de ética e incitando o ódio. Então, eu peço que as pessoas tenham sensibilidade. Esse é um momento de reflexão e de se reconstruir. A melhor religião é aquela que faz o ser melhor, já dizia Dalai Lama.