Você não precisa ser preto pra ter ojeriza ao racismo

Senta que lá vem...

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  • Fernanda Varela

Publicado em 5 de junho de 2019 às 12:46

- Atualizado há um ano

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Em Salvador, eu sou considerada branca. Cabelo liso, classe média/média-alta, moradora da região do Itaigara. Meu marido é preto (ou negro, se você acha que o uso dessa palavra te torna menos racista). Moramos juntos desde 2011 e, de lá pra cá, nada mudou.

Nas nossas vidas pessoais, claro que sim. Mas no racismo interminável que ele sofre, não, não mudou. Diariamente, durante esses oito anos e meio, ele foi confundido. Nunca com um médico ou um morador do bairro, mas sempre com o cara que veio prestar serviços no condomínio, o funcionário da escola em dia de votação, o organizador de produtos do supermercado. Hoje mesmo foi confundido com um taxista na porta do consultório (por uma pessoa branca em busca do serviço, claro). Não precisa estar lá para eu ter certeza que nenhum branco que estava no mesmo local sofreu a mesma abordagem. Ontem, um amigo - preto - relatou o desconforto com os olhares que recebeu quando foi ao Yacth (não dos funcionários, mas dos brancos frequentadores). Isso sem falar nas vezes que vizinhos entraram no elevador e só se dirigiram a mim com um “bom dia”. Ou aqueles que só respondem quando eu falo.

Não, não há demérito algum em ser uma dessas pessoas com as quais ele já foi confundido, mas vocês percebem o quanto isso escancara o racismo enraizado, principalmente partindo do branco? Até que se prove o contrário (ou apareça com um iPhone na mão ou uma roupa social impecável - e olhe lá), o preto é quem serve o branco. É como se ali (neste caso, o Itaigara) não fosse o lugar dele, é como se ele não tivesse o direito de ser um personagem que rotineiramente é encenado por alguém de pele branca.

Não é que seja um demérito ser o rapaz que arruma as prateleiras do supermercado. Não mesmo. Mas você já parou pra pensar no porquê do meu marido sempre ser confundido enquanto meu irmão, branco, que mora no mesmo local há 28 anos, nunca ter sido? Meus tios, primos, colegas de escola (99% brancos) também não. É uma peculiaridade do meu marido ser abordado para informar onde fica o sabão em pó? Não, é questão de cor, de pele mesmo.

Talvez você, branco e racista - por ignorância ou por maldade-, não saiba a dor que isso causa em quem ouve. Não imagina quanto fere cada palavra sua, atestando que ali não é o lugar do preto - a não ser que ele esteja pronto para ser subordinado ao branco, claro. “Curiosamente” nunca fui confundida com a moça da limpeza, nem com a empregada doméstica (ou filha dela) em nenhum prédio que já frequentei nos meus 30 anos de vida. Em contrapartida, já fui confundida com a médica da clínica, a dona da loja da Pituba e com a dona do carro de luxo estacionado. Minha mãe, branca, idem.

Não é possível que você, branco, não enxergue que tem algo errado. Aliás, está tudo errado. Eu não sei o que é sofrer racismo e, óbvio, nunca vou sofrer. Você também não. Mas minha empatia e humanidade me permitem entender que machuca, dói, fere. É errado, porra. Talvez alguém que sofra racismo use cada ato de discriminação como combustível para ocupar mais e mais espaços majoritariamente brancos (sabe aquela história de que, com raiva, a gente consegue coisas que nem imagina?). Mas essa não é a saída. E, em muitos outros casos, a discriminação cansa, desanima, causa desistência. Em muitos casos, eu diria.

Você não precisa ser preto pra ter ojeriza ao racismo. Não precisa nem mesmo ser branco para ser racista. Certa vez uma moça preta que fazia faxina para o meu antigo vizinho disse que seu patrão havia casado com uma mulher “com cara de empregadinha”. A mulher era preta, claro. É assustador.

O objetivo desse texto não é apontar dedos ou agredir. É pedir que você faça uma reflexão sobre seus atos. Que você analise se é uma dessas pessoas no dia a dia. Pode fazer essa reflexão sozinho, sem se manifestar. Desde que você consiga repensar seu racismo, já tá valendo.

Todos nós temos preconceitos. TODOS NÓS. Até o mais evoluído dos seres humanos. É duro admitir e enxergar, eu sei. Mas é mais duro ainda para quem precisa lidar com o preconceito sofrido.

Não é fácil assumir que temos algumas (muitas ou poucas) atitudes ou pensamentos racistas, machistas, homofóbicas, gordofóbicas ou seja lá de que natureza for. Mas também não é nada fácil ser discriminado, ofendido, humilhado, machucado - até fisicamente, muitas vezes.

Pessoas que têm o mínimo de consciência da gravidade disso tudo sentem vergonha quando notam onde estão seus preconceitos. É isso é ótimo, porque é um sinal de que já identificaram que é errado. E saber que é errado é o primeiro passo. Significa que você sabe que precisa mudar urgentemente.

Existem pessoas maravilhosas que têm preconceitos e isso não faz com que elas sejam desprezíveis. Aliás, pessoas maravilhosas enxergam seus preconceitos, admitem e trabalham incansavelmente para se desfazer deles e ressignificar as coisas. Pessoas desprezíveis, de fato, acham mesmo que o branco é superior ao preto, por exemplo. Não enxergam (nem querem enxergar) como racismo isso tudo que descrevi.

Pior: ainda acham justificativa pra seus comportamentos: “Mas é normal o médico ser branco e o encanador ser negro, não???”. É aí que também mora o problema. Quem tem a pele preta já nasce em desvantagem no Brasil. Antes do corte do cordão umbilical, já é destinado a ouvir mais “não”, a ter que provar em dobro competência. Muitos são ensinados ainda na infância a como lidar com olhares tortos, desconfiança. Eu, branca, nunca fui instruída de que roupa deveria usar pra não ser confundida com ladrão, nem fui alertada para evitar ir às Americanas de mochila. Nenhum segurança sequer já me seguiu em algum lugar. Isso até hoje.

Quem enxerga justificativa pra tudo isso aceita o racismo, acha normal. Deve pensar: “mas eu sou obrigado a gostar de preto?”. Aceita o privilégio de ser branco. No Brasil, branco de classe média tem uma cacetada de privilégios e gosta muito disso. Igualdade racial provoca arrepio. Afinal, preto só deve ocupar novos espaços quando autorizado - ou mediante gestos de caridade do branco (que alimenta o sentimento cristão de amor ao próximo a cada doação de panetone ao porteiro no Natal). O amor ao próximo vai até a página 2, como dizem.

Tudo escrito aqui é só uma pequena ponta do iceberg. É o que eu vejo acontecer com pessoas próximas. Marido, colegas, amigos. Dói em mim, mas com certeza dói muito mais em cada um que sofre com isso.

Racismo é histórico, milenar e tem raízes fincadas, profundas. Não precisa chamar ninguém de macaco pra discriminar ou ser racista. Faça sua reflexão, inicie sua desconstrução. Ser racista é perverso, cruel e é errado.

E você, que foi machucado hoje, não deixe de lutar. Vai ter preto morando no Itaigara e onde mais quiser.

Texto publicado originalmente no Facebook e replicado com autorização da autora