Volta às aulas depois dos 60 anos ganha fôlego

Opção para ter uma vida ativa mostra que o saber não tem idade; veja dicas

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  • Laura Fernades

Publicado em 1 de março de 2020 às 05:30

- Atualizado há um ano

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A reprovação estava no olhar: “O que esse velho está fazendo aqui na sala?”. Foi assim que José Balbino de Santana, 71 anos, narrou ter se sentido, certa vez, ao ser observado por alguns colegas mais novos. Dentista aposentado após 40 anos de atuação no Hospital Geral do Estado (HGE), Balbino está em sua quinta faculdade.

Depois de passar por Odontologia, Direito e Biologia, está no primeiro semestre de Zootecnia na Universidade Federal da Bahia (Ufba). Ao mesmo tempo, corre contra o tempo para entregar o  Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) em Comunicação, na Faculdade 2 de Julho. “Estou tentando levar a vida para o Alzheimer não pegar”, justifica Balbino, bem-humorado.

O ativo estudante é uma das pessoas da chamada terceira idade que não veem o passar dos anos como obstáculo para voltar para a sala de aula – ou até mesmo pisar os pés pela primeira vez. Para se ter uma ideia, cerca de 560 pessoas com mais de 60 anos se inscreveram no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) na Bahia no mais recente levantamento feito pelo Inep, no ano de 2018.

“Independentemente de estar sempre atualizado, a questão da saúde mental é fundamental. Quanto mais você exercita, melhor”, justifica Balbino. Dedicado, o aluno solicitou o trancamento do curso de Zootecnia e não pensa em voltar por falta de identificação, mas pretende pedir transferência para o curso de Letras, porque não quer parar de estudar tão cedo.

“Acho que educação é fundamental, é a base de tudo mesmo. Você tem que estar preparado para encarar o mundo. Não podemos ficar para trás, temos que nos atualizar”, justifica. “A gente vê que os fatos são terríveis quando há deficiência na educação”, alerta. José Balbino, 71 anos, está em sua quinta faculdade (Foto: Marina Silva/CORREIO) Necessidade A busca de Balbino pelo conhecimento não é para passar o tempo, explica, mas “uma necessidade”. O curso de Direito, por exemplo, que veio depois de Odontologia, foi procurado porque sua mãe tinha um processo que levou dez anos na Justiça e ninguém sabia o porquê. “Mamãe era uma pessoa sem recurso e decidi eu mesmo resolver isso”, conta.

Comunicação, por outro lado, entrou em sua vida porque Balbino, que foi radialista da Rádio Educadora por 26 anos, levava o filho no curso de Direito todos os dias e ficava um tempo sem fazer nada. “Pensei: Por que não? Venho todos os dias para essa faculdade”, lembra o estudante, sem esconder o orgulho da maratona que enfrenta depois da aposentadoria.“Não virei uma pessoa idosa que só dança naqueles bares. Minha vida é outra. Acho que você tem que estar ligado nas coisas atuais. Quando você se junta à juventude, você rejuvenesce”, defende Balbino.Espécie de agitador dos amigos, convidou uma turma da mesma faixa etária para fazer a prova do Enem, há cinco anos, quando tentou o exame pela primeira vez.

E não é que todos conseguiram aprovação? “Só ficaram lamentando que a pontuação foi baixa”, conta, rindo. “Um deles passou em Letras e os outros ficaram só com o resultado do Enem, mas felizes da vida, mostrando pra todo mundo que são capazes de passar em uma faculdade depois dos 60”, acrescenta. A mãe de santo Maria Amélia, 72 anos, vai se formar em sua primeira faculdade (Foto: Betto Jr./CORREIO) Primeira vez Nunca é tarde para conseguir uma graduação ou concluir um curso, opina Balbino. Mas não era assim que a mãe de santo Maria Amélia dos Santos, 72 anos, pensava. De tanto ouvir a filha perguntar “mãe, por que a senhora não faz o Enem?”, resolveu tentar a sorte com 68 anos, mesmo achando tarde para começar. 

Sem dinheiro, aproveitava as madrugadas na frente da televisão, assistindo aos telecursos. “Dava 6h da manhã, levantava o caderno e ‘ói’ eu estudando”, lembra Maria Amélia, rindo. Hoje, cursando o último semestre de Serviço Social na Unifacs, a mãe de santo se sente realizada por estar perto de concluir sua primeira faculdade.

Baixinha, dos cabelos brancos – “um chumaço de algodão!”, diz –, Maria Amélia esperou a vida se ajeitar para só então pensar nos estudos. “Deixei meus filhos crescerem pra tomar partido da minha vida. Quando chegou a terceira idade, pensei: ‘não vou ficar dentro de casa’”, justifica.

Orientada pela filha, a futura assistente social passou no vestibular e ganhou uma bolsa integral por meio do Programa Universidade para Todos (Prouni). “Eu estudo, minha filha. Se não fizesse isso, não passava”, afirma Maria Amélia, segura de si.“Tenho que buscar estudar, né, porque o tempo não parou. Quanto mais saber a gente tiver, melhor. Não falto um dia!”, completa a estudante dedicada.Poderosa Moradora da Estrada Velha do Aeroporto, Maria Amélia conta que nem sente quando atravessa a cidade para estudar, afinal adora chegar na sala de aula e encontrar os colegas. “Todos me respeitam. Sou mais conhecida ali do que peixe no mar”, conta, rindo, sem esconder o orgulho de ser a mais velha da turma.“Ah, minha filha! Fico feliz quando estou dentro da universidade, sabia? Quando chego e sento, me sinto poderosa!”, resume.Uma das coisas que motivaram Maria Amélia a enfrentar o desafio da universidade foi constatar que em sua religião “tem muita gente que precisa ser orientada”. Mãe de santo do Terreiro Ilê Axé Igan Igan Jitolodun, a estudante disse que “nunca viu chegar um assistente social pra conversar com o povo do terreiro”. Diante disso, resolveu aceitar a missão “pra ter mais sabedoria”, explica.

Formado na sua maioria por mulheres que não estudaram, ou abriram mão de suas vidas para cuidar de filhos, o curso de Serviço Social da Unifacs tem um público geralmente mais velho, observa a coordenadora Suzana Coelho. Isso faz com que ele seja um pouco diferente dos outros cursos, “porque esse público está em busca de realizar um sonho profissional”, explica Suzana, que é assistente social.

“Acho interessante dar acesso a pessoas que não tiveram oportunidade anteriormente, promover uma troca de experiência entre mais jovens e mais velhos e formar pessoas com outro nível de maturidade. Pessoas que talvez nem vão atuar profissionalmente, mas sonham em ter uma profissão, ser reconhecidas pela família, pelos filhos e pela sociedade”, destaca.

Cadáver A perita criminal Delma Gama, 75 anos, por exemplo, só resolveu alimentar sua sede por cultura agora. Depois de 30 anos de atuação na polícia, “conversando” com cadáveres, Delma prestou vestibular para o curso de Direção Teatral na Ufba. Passou na primeira fase, apesar de não ter tido o mesmo sucesso na prova prática, cujo resultado foi divulgado há duas semanas.

A ideia da terceira graduação surgiu quando Delma, que é formada em Direito e Pedagogia, se viu aposentada. “Meu Deus, vou ficar sem nada?”, pensou, enquanto conversava com o neto de 18 anos. “Que aposentadoria chata é essa? As pessoas da minha idade só falam de doença’”, queixou-se a avó jovial que tem um “namoradinho de 39 anos” que não mora na mesma casa. Afinal ela acorda “que nem um dragão” e quer ser vista “sempre bonita”. Perita criminal aposentada, Delma Gama tentou entrar em sua terceira faculdade aos 75 anos (Foto: Marina Silva/CORREIO) Foi no meio dessa crise existencial que Delma escutou do neto: “Ô, vó, vou fazer o Enem. Vamos fazer comigo?”. Mãe de dois filhos e avó de três netos, a ex-perita criminal topou o desafio e vibrou com o fato de poder conhecer um novo mundo, uma geração cuja “diferença é abissal”. “São tantas gírias maravilhosas, figuras altamente pitorescas. Pense!”, conta, rindo.

Na prova da segunda fase, por exemplo, Delma dirigiu um grupo mais novo no ensaio de três textos clássicos da dramaturgia. “Fiquei feliz da vida, como se fosse uma adolescente”, lembra. Apesar da pequena alegria, a ex-perita confessa ter ficado chateada por não ter passado na segunda fase e adiado sua terceira formatura que aconteceria aos 80 anos.

“Não é por dinheiro, é apenas por prazer”, justifica, sobre não desistir. Aos que acreditam ser tarde para voltar à sala de aula, Delma manda seu recado. “Se o tempo lhe é favorável e você pode penetrar nesse mundo, vá. Tenho sede de cultura, sede de saber e a parte que ficava negligenciada está latente. Agora que estou me vendo livre de tudo e tenho a chance de voltar, é maravilhoso. Estou me sentindo fisicamente e espiritualmente renovada”, vibra.

A sala de aula ajuda  na prevenção do mal de Alzheimer

Depois de se aposentar, muitas pessoas apresentam quadros de depressão e demência, porque perdem algo que as está mantendo em atividade. “Algo que vai além do dinheiro: a autoestima, o se sentir útil, a vida social com pessoas do trabalho”, explica a neurologista Jesângeli Dias, que atua no Hospital Português.

Após o Fevereiro Roxo, mês de conscientização sobre o Alzheimer, a neurologista explica como a sala de aula pode ajudar na prevenção da doença que afeta cerca de um 1,2 milhão de pessoas no Brasil. “Ter contato social, ter uma rede, é importante para manter seu cérebro vivo. As relações sociais são prazerosas e boas para o funcionamento cerebral”, explica.

Na faculdade, o indivíduo com mais de 60 anos tem a oportunidade de encontrar outras pessoas, comenta Jesângeli, além de estabelecer metas, objetivos e propósitos, que são “importantes do ponto de vida da memória”.“Além disso, estudar é um exercício que estimula o funcionamento neuronal. É importante procurar exercitar outra função que seja nova para ele, para desenvolver conexões novas”, completa.Dicas para manter a mente ativa após os 60

Crie novos objetivos Estabeleça novas metas depois da aposentadoria, algo que te faça se sentir importante, útil. Isso previne a depressão

Se exercite A atividade física manda mais fluxo sanguíneo para o cérebro, fortalece os neurônios e trabalha a memória. Academia, hidroginástica e aula de dança são opções

Enriqueça o ciclo social Procure fazer novas amizades, ou reativar laços antigos que foram perdidos pela falta de tempo. Procure sair e encontrar essas pessoas para ter alegria de viver

Tenha alimentação saudável Controle fatores de risco para evitar doenças como diabetes, hipertensão e colesterol alto. No caso de ansiedade, procure um profissional

Aprenda um instrumento A música proporciona prazer e  bem-estar. Músicas antigas reativam a memória. O estado de Estresse libera cortisol no corpo que não é bom para a memória