Woody Allen no lar dos oprimidos

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  • Paulo Sales

Publicado em 15 de fevereiro de 2021 às 05:00

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Devoro com avidez a autobiografia de Woody Allen, como se ela fosse – e é – uma iguaria rara. Protagonista e testemunha de um período particularmente fértil do cinema norte-americano, Allen passa boa parte do livro trazendo à tona, de forma leve e espirituosa, reminiscências da sua infância, juventude e formação como cineasta. Mas chega um momento em que o humor sutil dá lugar a um desabafo amargo. É quando ele se embrenha no escandaloso processo de separação da atriz Mia Farrow, que desaguou na denúncia de abuso sexual da filha de ambos, Dylan, pelo pai.

Lendo o relato de Allen, me convenço ainda mais da sua inocência. Não que duvide do que disse Dylan, hoje uma mulher de 35 anos. Mas parece evidente que ela sofreu o que na psicologia é chamado de alienação parental – ou memória emprestada, para usar o termo do neurocientista Oliver Sacks. Em outras palavras, uma manipulação psicológica tão pesada, promovida ou induzida por pais ou avós, que faz com que a criança realmente acredite ter sofrido um trauma.

Na época, Allen foi inocentado da acusação após duas investigações exaustivas. Mas em 2014 tudo voltou. Dylan escreveu uma carta reafirmando o abuso e sua causa foi encampada pelo movimento Me Too. O cineasta perdeu contratos e quase foi impedido de fazer filmes. Sua autobiografia por pouco não permaneceu inédita. Além de ter perdido o contato com a filha que amava, um gênio da sua estatura, já octagenário, se viu obrigado a justificar-se por um crime inexistente.

Nessa sujeira toda envolvendo o caso, o que realmente me chocou foi a maneira opressora com que Mia Farrow criava seus filhos: fazendo distinções claras entre os biológicos e os adotivos, promovendo sessões de tortura psicológica, propagando medo a qualquer hora do dia. Um lar disfuncional, que tinha como matriarca uma mulher com graves problemas emocionais, oriundos provavelmente da sua própria infância em um lar igualmente disfuncional. Não por acaso, dois dos filhos de Mia cometeram suicídio.

Olhando a vida pregressa de Soon-Yi – a filha adotiva que se tornou o estopim da separação e hoje é mulher de Woody Allen – chega a ser inacreditável que ela tenha se recuperado. Depois de viver nas ruas de Seul, na Coreia, quando tinha cinco anos, comendo até uma barra de sabão encontrada no lixo para matar a fome, Soon-Yi foi resgatada por freiras e viveu num convento (onde era feliz) até ser adotada por Mia Farrow. A partir daí, sua vida tornou-se um flagelo contínuo. O afeto inexistia e ela era pouco mais do que uma escrava, tratada como deficiente mental.

Para quem, como eu, passou a infância ao lado de pais amorosos e presentes, a ideia de crescer em meio ao horror é inconcebível. Dificilmente se escapa ileso. As sequelas se perpetuam até a idade adulta e em geral a criança que sofreu o abuso – seja físico, sexual ou emocional – tende a reproduzi-lo no futuro, a não ser que receba o devido apoio afetivo e profissional. Sim, a vida em família pode ser um martírio. Com um agravante: normalmente impera o silêncio, o não-dito, a dor represada.

Um dia, a barragem que sustenta o sofrimento se rompe e ele se espalha feito uma avalanche, como se vê em Festa de Família, do dinamarquês Thomas Vinterberg. Ou permanece latente por décadas até se converter em loucura, como em Repulsa ao Sexo, de Roman Polanski. Mas, por mais impactantes que sejam esses filmes, eles são só um reflexo edulcorado da vida real. Como diria Belchior, a vida realmente é diferente, quer dizer: a vida é muito pior.