Xangô, o guardião do Terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, volta ao trono

Sucessora de Mãe Stella de Oxóssi, a ialorixá Mãe Ana de Xangô toma posse

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  • Luana Lisboa

Publicado em 17 de junho de 2022 às 05:30

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Ana Albuquerque/ CORREIO

O reinado de Mãe Ana de Xangô como sucessora de Mãe Stella de Oxóssi, no Terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, começou quando o machado de Xangô, orixá da Justiça e patrono do terreiro, assim o decidiu, em 2019, após um ano de luto pela morte de Mãe Stella. Na noite dessa quinta-feira (16), no dia do rei da nação Ketu, Oxóssi, filho de Oxalá e Yemanjá, uma cerimônia que reuniu cerca de 200 pessoas oficializou a nova ialorixá.

A filha de Stella, descrita pelos conhecidos como reservada e carinhosa, foi levada ao Barracão pelo babalorixá Balbino Daniel de Paula, o Obaràyí, responsável por interpretar o jogo de búzios (ifá) que definiu a nova mãe de santo. Mãe Ana é a sexta ialorixá do terreiro.

A caminhada se iniciou por volta das 20h, na Casa de Xangô, seu orixá. De posse de seu adjarin, um instrumento sagrado em formato de sineta, utilizado para chamar o orixá, adentrou o espaço lotado, sob a expectativa, sons e a empolgação de quem estava lá só para vê-la. Cerca de 200 pessoas participaram da cerimônia no terreiro em São Gonçalo do Retiro (Foto: Ana Albuquerque/ CORREIO) Cerca de uma hora antes, no entanto, os rituais já haviam sido iniciados. O chão, coberto de folhas de mangueira, o teto de fitas brancas, e uma cadeira de madeira como símbolo da majestade adornavam o ambiente, além do ofá na parede, um arco e flecha relacionado ao rei de Ketu, Oxóssi. A data marca o início do calendário do ciclo de festas no candomblé.

Mulheres e homens de todas as idades, envoltos em vestimentas na cor azul turquesa, a cor de Oxóssi na nação Ketu, e por máscaras - único elemento a remeter os presentes à realidade da pandemia -, faziam parte da roda de danças - o Xirê - e da equipe de percussão, os alabês, sacerdotes músicos responsáveis pelos cantos e toques sagrados no candomblé.

A música e a cantoria só ajudaram a elevar a ansiedade dos presentes, reforçada com o aumento do ritmo dos batuques e com as palmas dos espectadores cada vez menos espaçadas, até que Mãe Ana chegou.

Celebração “Nós não vemos esse momento como sendo de substituição, mas um momento de celebração integral. Porque nós acreditamos que os nossos mortos não morrem, eles estão na árvore, no choro da criança, no movimento dos rios e dos ventos, então nós continuamos a celebrar a vida de Mãe Stella, e Mãe Ana faz parte dessa celebração”, disse Vanda Machado, historiadora e filha de Mãe Stella, assim como a sucessora do terreiro.

Em comum entre as duas, há muito. “O que acontece entre todas as mães é que uma contém o espírito da outra, além da vontade de fazer”, explica Vanda. A mesma mentalidade, portanto, era a de Mãe Aninha, fundadora do terreiro, e de quem a nova ialorixá tem em comum o nome e ascendência em Xangô. A historiadora Vanda Machado, filha de Mãe Stella de Oxóssi, assim como Mãe Ana de Xangô (Foto: Ana Albuquerque/ CORREIO) Ana Veronica Bispo Santos, ou Mãe Ana, foi iniciada na religião do Candomblé por Mãe Stella de Oxóssi ainda adolescente, quando recebeu o nome religioso de “Obá Gerê”. Ao CORREIO, em entrevista em 2019, aos 53 anos, contou ter se surpreendido com a decisão dos búzios de ser escolhida. “Eu, como filha do Ilê Axé Opô Afonjá, há 31 anos iniciada por Mãe Stella, não esperava por essa surpresa e essa grande responsabilidade que é reger esse terreiro”, disse ela, na época.

A escolha foi feita um ano depois da morte de Mãe Stella de Oxóssi, em  jogo feito por Balbino Daniel de Paula, o Obaràyí, uma das maiores autoridades masculinas dos candomblés do Brasil.

Babalorixá do Terreiro Aganju, em Lauro de Freitas, ele foi iniciado por Mãe Senhora, a terceira Mãe de Santo na linha sucessória do Afonjá (veja a linha completa ao lado, à esquerda).“Eu conheci Mãe Ana pequena, e para mim foi uma surpresa a escolha, foi quando o jogo determinou, fizemos o jogo no Barracão, viemos aqui [Casa de Xangô] para confirmar, e ele me confirmou que seria uma pessoa dele [Xangô]. Que ela possa coordenar o terreiro com muita sabedoria, paciência para fortalecer o axé do Afonjá”, disse Pai Balbino.E com Xangô não se pode brincar, como lembra Pai Balbino. “Xangô é fogo, é raio, é corisco... Ele é justo. Ele é o Rei da Justiça, o pai da justiça. Ele faz justiça! Estamos no Terreiro Afonjá, pedindo as bênçãos de Xangô, e acompanhados de toda corte e autoridades do terreiro, onde conduziremos para o barracão de festas, Mãe Ana, que oficialmente sentará na cadeira de Mãe de Santo do axé”, descreveu o babalorixá, sobre a cerimônia. Pai Balbino foi o responsável por interpretar o jogo de búzios que definiu a nova mãe de santo, em 2019 (Foto: Ana Albuquerque/ CORREIO) A pedagoga e professora tem realizado projetos socioeducativos e culturais no local desde que assumiu o terreiro, que possui 39 mil metros de área e fica localizado em São Gonçalo do Retiro, no Cabula.

O espaço contempla as casas dos Orixás, as residências de aproximadamente 35 famílias, a Escola Municipal Eugênia Anna dos Santos, a Casa do Alaká (espaço de artesanato), a sede da Sociedade Civil Cruz Santa do Axé Opô Afonjá, o espaço Carrapixo, a Biblioteca e o Centro Odé Kayodé e o Museu Ilê Ohun Lailai - “Casa das Coisas Antigas”.

Desde então, Mãe Ana de Xangô realizou a recuperação do Museu, que recupera a história do terreiro e das suas ialorixás e vem discutindo com a prefeitura de Salvador a implantação de uma creche para atender a demanda existente no terreiro e na comunidade do entorno, além de projetos para as crianças da área.

Ao longo da pandemia, no entanto, as atividades religiosas não estavam sendo realizadas no terreiro, para evitar pôr em risco os mais velhos.

A cerimônia de posse representa, além de tudo, a reabertura oficial do espaço, conforme explica o presidente da Sociedade Beneficente Cruz Santa do Axé Opô Afonjá, Ogan Emanuel Antonio Nascimento. “Além do período de pandemia, tivemos um ano de luto após a morte de Mãe Stella, onde só foram realizados os ritos de funerais. A abertura do terreiro agora é como se estivéssemos acendendo uma grande fogueira, onde vamos estar acolhendo as pessoas, que é uma característica da própria Mãe Ana”, disse ele.

Em dezembro de 2019, Mãe Ana de Xangô fez suas primeiras obrigações religiosas como mãe de santo do terreiro. Junto a outros filhos de santo, a religiosa limpou e arrumou a casa de Xangô, fechada desde a morte de Mãe Stella.

Ela é a sexta ialorixá da Casa e sucessora de Mãe Stella de Oxóssi, que morreu em 2018, aos 93 anos. Vida longa ao reinado de Mãe Ana de Xangô.

Xangô volta ao trono

Depois de 84 anos, o dia também marcou a volta de Xangô ao trono do Terreiro Afonjá. Durante esse tempo, o lugar teve a regência de Oxalá, Oxum e Oxóssi, retornando pela primeira vez às mãos do senhor do barracão, através de Mãe Ana.

Sob o comando de Mãe Aninha, ialorixá fundadora que permaneceu de 1909 a 1938, o terreiro viu a criação do Corpo de Obá, ou Ministros de Xangô, tradição só conservada na Bahia no Ilê Axé Opô Afonjá. Nele, integram só amigos e protetores do terreiro. Ainda hoje, os obás só ficam abaixo da mãe de santo e da mãe pequena, eventual substituta da mãe de santo. A função dos obás é a sustentação do axé, tanto do ponto de vista material quanto do seu status.

Nas últimas décadas, já ocuparam o posto os escritores Jorge Amado e Antônio Olinto, os compositores Gilberto Gil e Dorival Caymmi, o artista plástico Carybé e os pesquisadores Vivaldo da Costa Lima e Muniz Sodré.

Ao ser questionado sobre o que a volta de Xangô representa para o terreiro, nem mesmo Pai Balbino soube responder, repetindo ser um mistério. Disse, no entanto, que pediu as bênçãos do orixá para conduzir Mãe Ana à sua cadeira de mãe de santo. 

Ogan Emanuel Nascimento também não explica, mas afirma ver semelhanças entre a nova ialorixá e o orixá. “Mãe Ana é acolhedora, humanitária e carinhosa, e como toda chefe, tem seus momentos de dureza. É a mãe que acolhe, assim como Xangô, e eu posso dizer que tem muita semelhança entre o orixá e a pessoa. Hoje, ela é a representante dele. Então, se ele está retornando ao trono, tem um propósito, que ainda vamos descobrir qual é”, diz.

* Com supervisão da subchefe de reportagem Monique Lôbo