Xangô retorna ao comando da Casa Branca do Engenho Velho

Búzios escolheram Mãe Neuza, filha do orixá da justiça, como a nova ialorixá do ilê

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  • Monique Lobo

Publicado em 8 de dezembro de 2020 às 22:23

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Dadá Jacques/CORREIO

Um jogo de búzios feito pelo Pai Air José do Terreiro Pilão de Prata, nesta terça-feira (8), no barracão do Ilê Axé Iyá Nassô Oká, mais conhecido como Casa Branca do Engenho Velho, decidiu o destino do candomblé de nação Ketu mais antigo do Brasil. Sobre uma esteira no chão, os búzios apontaram a decisão dos orixás: Mãe Neuza de Xangô Aganju é a nova ialorixá. 

O retorno de Xangô à regência do axé tem as bênçãos de Oxum, de quem a antecessora de Mãe Neuza, Mãe Tatá Oxum Tomilá – que faleceu em dezembro do ano passado – era filha. Quis a orixá que a nova líder fosse escolhida justo no dia de sua celebração.

“Há muitos anos que não tem alguém de Xangô. Oxum já dirigiu duas ou três vezes, mas Xangô, que iniciou o axé, ficou lá para trás. Então, Xangô quis tomar a frente para poder renovar”, disse Pai Air José, bisneto de Bangboshê Obitikô, um dos fundadores da Casa Branca. 

Foi Pai Air José o responsável pelas obrigações com a morte de Mãe Tatá. Segundo ele, não foi uma surpresa muito grande a escolha da nova ialorixá. “São renovações”, disse, para em seguida desejar um caminho de paz à nova mãe de santo. “Ela vai dar seu nome e todos os mais velhos estamos aqui para acompanhar. Porque essa foi a definição do orixá. Peço à casa, ao axé, que tenha paz e tranquilidade”, falou.  Foi Pai Air José quem jogou os búzios que definiram a nova líder religiosa (Foto: Dadá Jacques/CORREIO) Mãe Neuza, batizada como Neuza da Conceição Cruz, 65 anos - 41 deles dedicados ao Candomblé -, trabalhou como caixa e fiscal de caixa até se aposentar. Tem uma filha e uma netinha. Ela chegou ao terreiro, onde foi iniciada por Mãe Marieta de Oxum, através do pai, que era axogum do lugar. Ele, que tinha sido iniciado pela própria mãe, criou uma irmandade com os irmãos de santo do Ilê Axé Iyá Nassô Oká e ficou por lá. 

Durante a escolha, ela não escondeu a emoção e, tampouco conseguiu segurar as lágrimas. “Eu nem sei explicar a emoção, nem o que estou sentindo”, contou. “Ainda estou sem entender porque o orixá me escolheu. É uma coisa inexplicável, só peço sabedoria ao orixá, que eu possa ter tranquilidade”, acrescentou. 

Quem sabe bem essa sensação é a Mãe Rita do terreiro Ilê Axé Lajuomim, uma das ialorixás presentes no ritual. “Hoje, eu revivi o que senti há nove anos. Eu sei e senti o que ela está sentindo hoje. É uma surpresa, porque você sai totalmente da sua vida regular para viver o axé com essa força espiritual que são os orixás. E é servir o orixá”, revelou. 

Mãe Ângela de Oxum participou do ritual representando o Ilê Iyá Omin Axé Iyá Massê, o terreiro do Gantois. Filha de Mãe Carmen, a ialorixá do terreiro, Mãe Ângela celebrou o momento especial. “É uma grande honra e merecimento fazer parte de um momento de grande força que é presenciar a escolha de Mãe Neuza e o retorno de Xangô para reger novamente esta casa. Que ela tenha muita luz, sabedoria, que seja muito bem conduzida e que tenha grandes realizações”, falou.

Seu Ribamar Daniel, Mobá do terreiro Ilê Axé Opó Afonjá, também presente na cerimônia, lembrou que todos os filhos de santo celebraram a nova ialorixá da casa que é a mãe de todas as casas. “Eu estou imensamente feliz. Porque nós, filhos do Ilê Axé Opó Afonjá, junto com o Gantois, somos descendentes diretos desta casa. Nos consideramos membros desse tronco aqui. Então, estamos todos imensamente satisfeitos e vou transmitir a Mãe Ana, que não pode vir, a nova escolha”, falou. 

As Equedes da Casa Branca também comemoraram a chegada da nova líder. Entre lágrimas, Patrícia Chagas pediu a Xangô, Ogum e Oxum sabedoria para a ialorixá. Tania Maria dos Santos, que está no terreiro desde 1973, falou do novo ciclo: “É a continuidade das nossas ancestralidades. Um novo momento com uma nova mãe de santo. Uma irmã minha, da mesma mãe de santo, então esse é o novo momento para continuarmos contribuindo com o nosso axé”, avaliou. Gersonice Azevedo Brandão, a Equede Sinha, lembrou da resistência do povo de santo. “Continuaremos na fé, na resistência e na continuidade, preservando e cultuando nossa ancestralidade. Porque essa é a nossa missão, continuar na luta e na defesa dos nossos direitos religiosos. Estamos muito felizes, o que Xangô decide é felicidade para a gente”, revelou. 

E foi essa compreensão que Mãe Neuza pediu ao receber o seu chamado. “Eu vou precisar muito dos meus irmãos, dos mais velhos e mais novos, vou precisar da ajuda, que eles estejam sempre ao meu lado para não deixar esse legado se acabar. Essa aqui é uma casa centenária, o primeiro axé, é uma responsabilidade muito grande. Que meu pai me dê forças pra continuar”. Cabiessilé, Salve o rei Xangô.A origem de todos

O Ilê Axé Iyá Nassô Oká,  ou Casa Branca do Engenho Velho, mantido pela Sociedade São Jorge do Engenho Velho, é considerado a primeira casa de candomblé de Salvador. Constituído de uma área aproximada de 6.800 m², contando as edificações, árvores e principais objetos sagrados, é o primeiro monumento negro considerado Patrimônio Histórico do Brasil desde o dia 31 de maio de 1984.

A comunidade foi fundada em 1830 por três negras africanas, Adetá ou Iyá Detá, Iyá Calá e Iyá Nassô, e pelos babalaôs Babá Assiká e Bangboshê Obitikô.

De acordo com o livro 'Equede - A Mãe de Todos (Barabô)', de autoria de Equede Sinha, após a Revolta dos Malês e a proibição do candomblé em 1837, Iá Nassô, que também era conhecida como Francisca da Silva, voltou para a África e por lá faleceu. Por tudo que fez, é considerada a primeira mãe de santo da Casa Branca. 

Em 1840, quem assumiu o axé foi Marcelina da Silva, a Obatossi. Após a morte de Obatossi, duas das suas filhas, Maria Júlia da Conceição e Maria Júlia de Figueiredo, disputaram a chefia do candomblé, cabendo à Maria Júlia de Figueiredo, que era a substituta legal (Iyá Kekeré ou mãe pequena) tomar a posse de Mãe do Terreiro, em 1886. Maria Júlia da Conceição afastou-se com as demais dissidentes para fundar o Terreiro do Gantois.

Mãe Sussu, ou Ursulina Maria Figueiredo, substituiu Maria Júlia Figueiredo na direção do Engenho Velho, em 1891. Com a sua morte, nova divergência foi criada entre suas filhas. Sinhá Antonia, substituta legal de Sussu, por motivos superiores, não podia tomar a chefia do candomblé. Em consequência, o lugar foi ocupado por Tia Massi, ou Maximiana Maria da Conceição, em 1926. Vencendo o partido da ordem, dissidentes inconformados fundaram então um outra casa, o Ilê Axé Opô Afonjá.

Tia Massi foi sucedida por Maria Deolinda Gomes Santos, Mãe Oké, em 1965. A direção sacerdotal do Engenho Velho foi posteriormente confiada à Marieta Vitória Cardoso, Oxum Niké, em 1969.  

Altamira Cecília dos Santos, a Mãe Tatá, assumiu a chefia da casa em 1986. Filha legítima de Maria Deolinda dos Santos, era carinhosamente chamada de Papai Oké.  E agora, em 2020, Neuza Conceição Cruz, a Mãe Neuza, marca seu nome na história do tradicional terreiro como a nona ialorixá do Ilê Axé Iyá Nassô Oká.Dinastia do Ilê Axé Iyá Nassô OkáFrancisca da Silva, a iá Nassô (1830-1837) Marcelina da Silva, a Obatossi (1840-1885) Maria Júlia de Figueiredo (1886 - 1890) Ursulina Maria Figueiredo (1891 - 1925) Maximiana Maria da Conceição (1926-1962) Maria Deolinda Gomes Santos (1965- 1968) Marieta Vitória Cardoso (1969 - 1985) Altamira Cecília dos Santos (1986 - 2019) Neuza da Conceição Cruz (2020 - atual) *Colaborou Dadá Jacques.