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Amanda Palma
Publicado em 7 de setembro de 2017 às 07:00
- Atualizado há 2 anos
O sete de setembro é o Dia da Independência. Não só a do Brasil, mas também a da estudante de Direito Rogilene Bispo, 28 anos, que, finalmente, vai viajar rumo a Portugal, para continuar o curso na Universidade de Coimbra, pelo programa de mobilidade acadêmica da Universidade Federal da Bahia (Ufba). Rogilene pedalava do bairro do Lobato, onde mora, até a Biblioteca dos Barris, para conseguir estudar, e fez uma vaquinha online para arrecadar dinheiro e custear a viagem.>
O que Rogilene não esperava era contar com a solidariedade de tantos desconhecidos, que, além de contribuírem em dinheiro, também doaram roupas, malas, sapatos e até notebooks. O equipamento era uma das preocupações da estudante, já que ela e as irmãs sempre usaram os computadores da Ufba para realizarem os trabalhos acadêmicos.>
“Eu acabei não carregando só meu sonho, mas o sonho de outras pessoas. É uma oportunidade que outros jovens queriam, mas não conseguiram. Eu levei muitos anos para realizar esse sonho. Tem pessoas do Brasil inteiro me mandando mensagens. Até hoje, as pessoas me ligam, perguntando se eu estou precisando de alguma coisa. Eu ganhei muita roupa de frio, ganhei várias malas, só vou usar duas e deixar pra minha irmã. Ganhei luvas, ganhei notebooks. Muita coisa mesmo”, contou. Rogilene: de malas prontas para Portugal (Foto: Evandro Veiga/CORREIO) No último mês, desde que a vaquinha ganhou repercussão, a vida de Rogilene mudou completamente. Além de ter que lidar com as atividades de final de semestre da Ufba, ela também correu atrás dos últimos detalhes para a viagem e foi convidada para entrevistas em veículos de comunicação no Brasil e em Portugal e até para dar palestra em uma escola. Aos jornalistas portugueses contou sua história de vida para inspiração de jovens que também vivem em condição de pobreza e enfrentam dificuldades para seguir com a vida escolar.>
“Não existe só uma Rogilene que tem essa trajetória de superação. Eu recebi muitos e-mails, muitas mensagens dizendo que eu era inspiração. Mensagens de pessoas que estavam pensando em desistir, mas não iam mais. Sei que tenho uma responsabilidade social agora. Eu fui dar palestras em escolas e os alunos choravam e me abraçavam”, lembrou a estudante, emocionada.>
Ela conta com a ajuda da mãe, a doméstica Gicelda Maria dos Santos, 58, para arrumar as duas malas que pretende levar. O último dia em Salvador foi dedicado para organizar as bagagens e pegar dicas de como arrumar tudo, inclusive as roupas de frio que ocupam tanto espaço. “Tá vendo, Rogilene? Tá ouvindo, veja como é, para fazer direito”, recomendava a mãe, enquanto a filha prestava a atenção nas recomendações que recebeu da reportagem do CORREIO para arrumar as malas.>
O novo capítulo da saga da moradora do Lobato começa às 9h desta quinta-feira (7), quando embarca para Belo Horizonte, onde faz escala. De lá, ela viaja para Lisboa e, depois, segue para Coimbra, onde vai ser recebida por um estudante baiano que mora na mesma república onde a estudante de Direito vai se hospedar pelo menos no primeiro mês. “Eu fiquei mais tranquila que ela vai ser recebida por alguém daqui”, diz dona Gicelda, que não quer pensar em saudade ainda. “Dois anos passam muito rápido, passam voando. Eu quero que ela siga os sonhos dela. Nunca vou ficar dizendo que quero que ela volte. Quero que faça o que for melhor”, afirma.>
Saudade Na pequena casa de paredes verdes no bairro do Lobato, um quadro com uma mensagem de fé dá as boas-vindas a quem chega ao imóvel. Lá Rogilene construiu os sonhos e agora se prepara para deixar o lugar por dois anos – tempo que vai durar o programa de mobilidade. Na véspera da viagem, a estudante conta que se divide em sentimentos. >
“Eu não sei nem dizer direito o que eu estou sentindo. Eu vejo meus colegas dizendo que agora vai ser a liberdade deles porque vão para o intercâmbio, mas às vezes eu fico triste, porque penso na saudade que vou ficar daqui, da minha família”, disse. A república onde ela vai morar é de estudantes de países do mundo inteiro e fica no centro da cidade, onde há muito barulho. “Me disseram que talvez eu não me acostume por causa do barulho do bairro, mas já encarei tanto Silvano Salles tanto Pablo nas alturas para estudar, que eu acho que vou sobreviver”, brinca a estudante. >
Apesar dos meses de férias que vai ter em Portugal, a estudante já tem os planos do que vai fazer: “eu tenho mutio desejo de conhecer toda a Europa”, diz. Ela vai receber uma bolsa do programa de assistência estudantil da Ufba para conseguir se manter.>
A ideia é aproveitar os meses livres para estudar idiomas em países próximos e sair da zona de conforto da língua materna. “Quero voltar fluente em inglês, estudar inglês em Malta, estudar francês na França e espanhol na Espanha mesmo, nas férias. Eu tenho três meses de férias, e como a passagem para o Brasil é cara, eu prefiro ficar lá estudando”, explica Rogilene. >
A baiana também já recebeu convites para participar de grupos de pesquisas e também hospedagem em outros países da Europa, mas avalia as propostas com cautela. “Eu só tô apreensiva porque eu vou chegar em um lugar que eu nunca fui, onde todo mundo me conhece e eu não conheço ninguém, então ainda não posso confiar nas pessoas”, afirma. >
O medo também de Rogilene se deve também à imagem sexualizada da mulher brasileira na Europa. “Infelizmente a imagem da brasileira lá fora é muito sexualizada. Eu estou mais tranquila, porque as pessoas já sabem que eu estou indo para lá estudar, por isso foi muito boa a repercussão. Sei que vai haver o preconceito racial e por eu ser brasileira também. Mas eu estava muito mais preocupada porque existe essa imagem da mulher do sexo fácil, mas todo munho agora conhece minha história, eu acredito que vai ter um respeito”, aposta a estudante.>
Taxas Ao todo, Rogilene arrecadou cerca de R$ 25 mil, sendo que 7% vão ser recolhidos pelo site no qual a vaquinha online ficou hospedada no mês de agosto. A meta era conseguir R$ 50 mil, para conseguir custear as taxas anuais da Universidade de Coimbra. A estudante conta que aguarda uma resposta de isenção dos valores, que está sendo negociada pela Ufba.>
“A própria faculdade está fazendo essa negociação institucionalmente sobre a isenção das taxas, que eles dão para alguns estudantes todos os anos. Eu acredito que tudo vai se resolver. Se não tiver a isenção, vai se resolver de outro jeito. A faculdade não vai me desamparar”, acredita a estudante. >
Mesmo sem a certeza do dinheiro, o foco da estudante agora é no mais novo capítulo de sua saga, cheio de emoção. “Minha ficha não caiu ainda, sempre esteve tudo muito distante. O que eu consegui hoje é uma exceção porque muitas mulheres pobres teriam desistido e desviado de caminho. Mas eu sempre tive muito foco”.>