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Carol Neves
Arthur Max
Publicado em 19 de dezembro de 2025 às 06:14
Era o início da noite de 25 de agosto de 1980, pouco antes das 19h, quando a rotina da família Muller foi quebrada de forma violenta dentro da Joalheria J. Muller, localizada na Rua Recife, esquina com a Rua Florianópolis, no Jardim Brasil, na Barra. Como faziam diariamente, José Muller, sua esposa Maria Muller, conhecida como Dona Marinha, o filho Alberto, o neto Dan, de apenas três anos, uma funcionária e o vigilante José Augusto, que trabalhava à paisana, retiravam as joias das vitrines para guardá-las no cofre antes do fechamento da loja. >
O movimento na rua ainda era intenso, típico para a região, e nada indicava que, em poucos minutos, o local se transformaria em cenário de tiroteio, mortes e comoção que atrairia centenas de curiosos e mobilizaria a polícia por mais de 12 horas.>
Nesse momento, três homens armados invadiram o estabelecimento. Um deles, posteriormente identificado como Fidelis Ferreira Campos, de 34 anos, rendeu todos os presentes e passou a comandar a ação com tranquilidade aparente. Ele perguntou onde ficava a arma da loja.>
Crime na Joalheria Muller
O que ele não percebeu foi que José Augusto, parado entre os clientes e funcionários, era o vigilante responsável pela segurança. Sem farda, ele passava despercebido. Enquanto Fidelis se dirigia ao cofre, na retaguarda estava Lourival Vieira Barros, de 27 anos, também mineiro, e o terceiro integrante da quadrilha voltou a sair, ficando do lado de fora, próximo à porta, pronto para dar cobertura usando um carro Chevette.>
Quando Fidelis virou as costas e se aproximou do cofre, José Augusto reagiu. Armado com um revólver Taurus calibre 38, disparou à queima-roupa, matando o assaltante instantaneamente. O tiro rompeu o silêncio da joalheria e deu início a uma sequência de pânico, gritos e correria dentro do pequeno espaço.>
Tiroteio, reféns e mortes>
Do lado de fora, ao ouvir o disparo, o terceiro assaltante reagiu atirando contra José Muller, que foi atingido no braço e na coxa. Ao mesmo tempo, Lourival tentou fugir usando Dona Marinha como escudo humano, segurando a mulher enquanto descia a pequena escada de acesso à loja.>
Já na calçada, Lourival soltou a refém, mas acabou atingido por disparos feitos por Alberto Muller, que utilizou a arma de Fidelis, morto segundos antes dentro da loja. Lourival caiu sem vida em frente à joalheria, enquanto o terceiro assaltante conseguiu fugir a pé em meio à confusão. >
Em poucos minutos, a Rua Recife se transformou em um cenário de violência. Vidros estilhaçados, marcas de sangue espalhadas pelo chão e dois corpos - um dentro da loja e outro na calçada - chamaram a atenção de moradores e transeuntes. Dezenas de pessoas aglomeraram no local, apesar das tentativas da Polícia Militar de conter os curiosos. Muitos levantavam o lençol que cobria o corpo de Lourival na tentativa de reconhecê-lo.>
Baleado, José Muller foi socorrido e levado ao COT do Canela, onde passou por cirurgia, sendo depois transferido para o Hospital Português. Em recuperação, resumiu o que viveu naquela noite com uma frase que se tornaria símbolo do episódio: “Vi a morte na minha cara e agora nasci de novo.”>
Vigilante herói>
Aos 28 anos, José Augusto de Freitas Gonçalves Filho estava longe da imagem clássica de herói. Alto, magro, bigode espesso, camisa branca comum, mostrava-se tímido ao falar de si. Nascido em Salvador, casado e pai de um filho, trabalhava havia um ano e meio como vigilante da Joalheria Muller, após deixar o emprego de auxiliar de escritório em uma seguradora. Ele falou ao CORREIO dias depois do crime e recusou o rótulo de "salvador".>
Na noite do assalto, estava na porta da loja no fim do expediente, enquanto as joias eram levadas das vitrines para o cofre. Ele próprio marcou o horário: “Faltavam dez minutos para as 19 horas.” Quando os criminosos entraram, demorou a entender o que acontecia. “Pensei que fosse brincadeira, cheguei até sorrir, e aí fui surpreendido com dois tapas”, relatou, mostrando que foi ferido e chegou a ficar com uma pequena cicatriz perto da orelha. >
O controle veio ao perceber quem estava em risco. Dentro da loja estavam os donos, funcionários e o menino Dan, de três anos. “Fiquei com medo principalmente por causa da criança”, contou. Tentou acalmar todos: “Tenham calma que é mesmo um assalto. Os caras estão falando sério. Mas vai sair tudo bem.”>
Por opção, José Augusto trabalhava sem farda, acreditando que vigilantes uniformizados se tornam alvos fáceis. Confundido com um funcionário comum, foi levado até a sala do cofre. Mesmo armado, esperou o momento certo. Quando o assaltante se voltou para o cofre, reagiu: “Então foi só o patrão se abaixar e eu queimei acertando na costela do bandido que não teve reação.”>
Sobre o instante decisivo, negou qualquer impulso heroico. “Não que eu seja mais corajoso que os outros. Mas eu estava com raiva”, disse. Para ele, tudo foi instinto. “Nessas horas, o instinto fala mais alto.”>
Após o tiroteio, ajudou no socorro, tentou perseguir o terceiro assaltante e depois se recolheu, acompanhando o caso à distância. Ao se apresentar à polícia, resumiu o episódio de maneira direta: “Não sou nenhum herói. Todos nós demos muita sorte.”>
Investigação e descobertas>
As investigações apontaram que Lourival, um dos homens mortos na ação, usava identidade falsa. O nome verdadeiro era José Maria Campos, foragido da Penitenciária de Campinas, onde cumpria pena de 90 anos de prisão por latrocínios e assaltos a banco. Com longa trajetória no crime, era conhecido pelas polícias de diferentes estados pelo apelido de “Diabo Loiro”, alcunha associada à violência das ações atribuídas a ele e à liderança de grupos armados especializados em roubos.>
O segundo assaltante morto, Fidélis Ferreira Campos, era primo de José Maria e também acumulava extensa ficha criminal. Identificado como traficante de drogas, respondia a 14 processos por roubo à mão armada em Minas Gerais. Havia deixado a Penitenciária de Belo Horizonte poucos meses antes do assalto à joalheria, o que reforçou, para os investigadores, a avaliação de que o grupo atuava de forma reincidente e articulada, circulando entre estados e retomando rapidamente atividades criminosas após a libertação.>
O terceiro assaltante, que se apresentava como Vicente Lascoza ou Vicente Gonçalves da Cunha, conseguiu escapar. Policiais acreditavam que ele havia deixado o estado e concentravam buscas em Minas Gerais, onde tentavam localizá-lo e prendê-lo, sem sucesso. A polícia ainda chegou a considerar suspeita a namorada do Diabo Loiro, Eliana, que teria ajudado nos planos do assalto e fugido com Vicente. Ela também não chegou a ser presa. >
Com o avanço das apurações, a quadrilha passou a ser relacionada a outros crimes violentos registrados na Bahia, incluindo assassinatos e suspeitas de execuções. Entre os casos que chamaram a atenção das autoridades estava a morte de um casal de médicos, encontrado às margens da BR-101, crime que teve grande repercussão à época e foi posteriormente associado ao mesmo grupo.>
As investigações também passaram a relacionar a quadrilha ao assassinato de um padeiro em Mussurunga. Exames realizados pelo Departamento de Polícia Técnica indicaram que a bala extraída da cabeça da vítima foi disparada por uma das armas usadas no assalto à Joalheria Muller. Vestígios de sangue encontrados no interior do Chevette abandonado em frente à joalheria coincidiram com o da vítima. A polícia não tinha, à época, uma explicação definitiva para o crime, mas a hipótese levantada era de que o padeiro tenha sido morto ao tentar reagir a uma ação criminosa, e o corpo acabou abandonado.>