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Fernanda Santana
Publicado em 25 de dezembro de 2018 às 05:00
- Atualizado há 2 anos
As negociações para demolir a antiga Igreja da Sé, na Praça da Sé, começaram em 1919, no governo de J. J. Seabra. Deveria abrir caminho para o progresso dos bondes da Circular de Carris da Bahia. As pedras seculares da construção do século 16 caíram no chão em 1933. Do lado, continuou erguido o Palácio Episcopal, então residência e sede administrativa do arcebispado, fechado há 16 anos.>
As ruínas da igreja, enquanto isso, foram espalhadas até retornarem, algumas, ao palácio. Uma das pedras marco da fundação de Salvador, em 1549, está numa pequena sala dedicada à memória dos primeiros anos da cidade. A partir do dia 29 de março, o portão principal será aberto para visitas.>
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As portas abriram-se neste sábado (22), quando o arquiteto Luís Humberto recebeu a equipe do CORREIO para visita. Atrás delas, estão a prometida transformação do palácio, tombado em 1938 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Geográfico da Bahia (Iphan).>
Foram mais de quatro anos até que os funcionários das obras de restauração do espaço finalmente precisassem ajustar apenas os últimos detalhes. No ano de 2014, data de início das intervenções, a estimativa era de uma demora de dois anos. A reforma é executada pela Arquidiocese de Salvador, com orçamento federal, e suporte da Prefeitura de Salvador. A janela que 'falta' na parede do Palácio Arquiepiscopal era a antiga ligação com Igreja da Sé Primacial, demolida em 1933 (Foto: Marina Silva/CORREIO) Quando for entregue, o Palácio abrigará o Centro de Referência da História da Igreja Católica no Brasil, laboratórios para restauração de imagens e documentos, memorial católico, biblioteca e capela. O forro e o piso de madeira já não estarão mais despedaçados, como estavam quando o jornal visitou, em 2014, as dependências.>
As primeiras peças remanescentes da Igreja da Sé começaram a chegar ao longo de todo o ano. A pedra considerada um dos marcos da fundação de Salvador está no primeiro andar, ao lado do salão onde será projetado um vídeo sobre a história da cidade. O arquiteto Luís Humberto, que acompanha a obra de restauração (Foto: Marina Silva/CORREIO) O arquiteto Luís Humberto foi chamado no início do ano para participar da obra. “Quando Dom Murilo Krieger chegou [2011] eram só ruínas”, falou Luís. Na verdade, as ruínas são uma analogia para o piso trêmulo, as janelas desgastadas, o teto quebrado. Ao chegarem os funcionários da obra, muitos temiam até que toras de madeira caíssem sobre suas cabeças.“Mas, as dificuldades foram mesmo as prospecções de pinturas. Tem também outras. Por exemplo, esse trono [aponta para um trono de couro de 1780], só na Espanha e na Itália existe tecnologia para restaurar”, afirma, no segundo e último andar. Poltrona do século 18 faz parte do acervo do palácio (Foto: Marina Silva/CORREIO) O passeio pelos 1,9 mil metros remete ao passado da Igreja Católica no Brasil. No primeiro andar, está o púlpito de onde Padre Antônio Vieira (chamado pelo poeta Fernando Pessoa de "Imperador da Língua Portuguesa") pregava seus sermões. Antes, estava na Igreja da Ajuda, a poucos metros dali, no Terreiro de Jesus. “A igreja não tinha microfones, os padres precisavam ficar elevados para falar”, comenta. Próxima, a sala de cultos evoca o sincretismo religioso. Os condicionadores de ar ainda não instalados são os vestígios dos obstáculos encontrados nos seis anos de obra.“As dificuldades eram até de acesso. Demorou demais para chegar a isso que é hoje”, diz Gabriel Ferreira, encarregado da parte elétrica.O eletricista desembarcou em Salvador justamente para a intervenção no Palácio. Antes, já tinha participado de restaurações de igrejas e outras estruturas católicas espalhadas, principalmente, pelo Nordeste. “Isso aqui, na verdade, foi a restauração de uma ruína. Tivemos que rever a parte elétrica, instalamos dois elevadores”. O eletricista Gabriel Ferreira, encarregado da parte elétrica do palácio (Foto: Marina Silva/CORREIO) Foram, em média, 80 funcionários, de 7h às 17h, envolvidos na obra. Hoje, são apenas seis. Anos antes, tudo era diferente naquele palácio.>
De casa a ruína O português do Alentejo Dom Sebastião Monteiro da Vide chegou à Bahia em 1702. A Igreja da Sé foi o primeiro e único bispado do Brasil e era, a essa altura, a sede do arcebispado no país, submetido diretamente ao Vaticano. Em Salvador, Dom Sebastião determinou ser necessária uma estrutura correspondente à grandeza da Igreja para o Brasil. Então, determinou a construção do Palácio, entregue em 1715. Um ano antes, o país havia deixado a posição de colônia para vice-reino. E Salvador representava todo o vice-reino.“Como a Igreja era muito importante, o governo aceita a construção de um palácio episcopal”, explica o arquiteto e historiador Francisco Senna.O Palácio concentrava todas as atividades do arcebispado. O arcebispo ali morava e trabalhava. Os banhos ocorriam do lado de fora do palácio, numa estrutura coberta por azulejos azuis. Foi construído inspirado em palácios italianos. “Lembra muito mesmo os palácios italianos. Por exemplo, o Palácio tem um modelo de pátio central”, diz Francisco. O prédio de dois andares perde importância quando é determinada a demolição da Sé, em 1933. Afinal, tinha sido pensado justamente para ligar o arcebispo da Igreja para casa com facilidade. Permaneceu, no entanto, como sede administrativa.>
Assim continuou até 2002, quando as funções administrativas foram transferidas para o bairro do Garcia. O Palácio fecha as portas para o futuro e abre para os cupins e plantas indesejadas em toda a estrutura. Com a restauração, o arquivo da Arquidiocese e o gabinete do arcebispo serão transferidos. Mas a intenção é revitalizar, principalmente, a memória que, durante os anos fechados e de reforma, estava ameaçada.>
Há dois anos, Dom Murilo Krieger fez apelo para que as obras não fossem interditadas. Enquanto isso, o Banco Itaú e o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) não liberavam os R$ 18 milhões necessários para a conclusão. É quando a Prefeitura de Salvador também começa a contribuir com a obra, num repasse de R$ 470 mil. A justificativa, à época, foi a crise econômica. Muitos documentos da igreja e papéis corroídos voaram até se perderem até que o arquivo voltou, novamente, a ser recolhido. Sermões, cartas e outras relíquias da igreja fazem parte da mostra (Foto: Marina Silva/CORREIO) A briga pela Sé Há uma sala preta que guarda a história de glória e sinaliza para o futuro abandono do Palácio. Matérias de jornais da época trazem a tensão daqueles dias de 1933. No dia 31 de junho, o extinto Diário de Notícias trouxe como manchete e subtítulo: “Nos últimos dias de um tempo que viu nasceu a nacionalidade. A velha Sé, afinal vencida pelos imperativos de progressos urbanos”. É o momento de relembrar a derrubada da igreja criada para ser a primeira e maior sede do bispado brasileiro. A autorização, segundo Senna, parte do próprio Cardeal da Silva, o arcebispo da época.>
Conta-se que as negociações com a companhia dos bondes envolveram bastantes, e acaloradas, brigas políticas dentro da Igreja. No livro Memória da Sé, de Fernando da Rocha Peres, o autor conta que uma carta foi enviada ao papa da época, com justificativa de que a igreja deveria ser demolida pois estaria estragada. A confusão contrária não foi suficiente para impedir o que, hoje, para Senna, seria considerado um “crime”.“Isso foi um crime, só que é irreparável. Houve interesse de parte católico. Hoje, seria diferente. A Igreja foi demolida em 33, o Iphan foi criado em 1937. Se o Iphan já existisse, isso não existiria. Mas, antes, não existia nenhum instrumento de tombamento”, observou.Peças da igreja se perderam e muitas foram destruídas por picaretas. O arcebispado, por outro, ganhou da companhia dos bondes um casarão onde hoje está localizado o Morada dos Cardeais, edifício milionário no Corredor da Vitória onde mora a cantora Ivete Sangalo. “Mas, o que houve, no final das contas, é irreparável”.>
No lugar da Igreja, é erguida uma homenagem ao seu fim, em 1999, por obra do artista Mário Cravo. A Catedral Basílica torna-se a igreja mais importante da cidade. “Só que a Sé era muito mais antiga, tinha muito mais história. A Catedral tinha que ser a ser”, acredita Francisco Senna.>
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Construída em 1657, a Catedral Basílica passou a ser considerada a primacial do Brasil e ficou fechada durante quase quatro anos para obra de restauro. Foi reaberta somente em setembro deste ano, após investimento de R$ 17 milhões, um milhão de reais a menos que o necessário no Palácio.>
Agora, a Arquidiocese de Salvador planeja estratégias para manter em funcionamento o Palácio. As exposições fixas e temporárias devem atrair o público. A data escolhida para reinauguração, o Aniversário de Salvador, também deve despertar atenção para o prédio de esquina da Praça da Sé, desconhecido de muitos soteropolitanos. “O que precisamos são de receitas. Receitas para manter. Quem sabe fazer uma lojinha aqui também”, opina Luís Humberto. O que precisam é que a memória não se perca mais uma vez.>
*Com supervisão dos editores Mariana Rios e João Gabriel Galdea. >