'Foi uma bomba saber que 17 covardes sacrificaram meu filho', diz mãe de Davi Fiuza

Rute Fiuza quer corpo do filho; Polícia Civil indiciou 17 PMs

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  • Tailane Muniz

Publicado em 8 de agosto de 2018 às 04:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Betto Jr/CORREIO

Quatro anos se passaram desde o desaparecimento do adolescente Davi Fiuza, 16 anos, em 24 outubro de 2014, na manhã de uma sexta-feira. A certeza da morte do garoto, no entanto, veio em forma de pressentimento para sua mãe, a comerciante Rute Fiuza, já no dia seguinte do sumiço.

O menino, que havia saído para comprar pão com uma vizinha, foi abordado durante uma operação da Polícia Militar no bairro de São Cristóvão, onde a família morava, e nunca mais voltou.

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Para Rute, o indiciamento de 17 polícias no inquérito da Polícia Civil, não traz qualquer conforto ou sentimento de alívio. A informação foi confirmada ao CORREIO pelo advogado assistente de acusação junto ao Ministério Público Estadual (MP-BA), Paulo Kleber Carvalho Filhom, e depois pela assessoria de comunicação da Polícia Civil.

Em 2016, 23 PMs foram denunciados pela Polícia Civil, mas o Ministério Público pediu novas investigações. Em janeiro de 2017, o MP prorrogou o prazo para entrega do inquérito para abril daquele ano, mas não obteve retorno da polícia."A morte do meu filho não é novidade, eu sempre soube, desde o dia seguinte que eu senti. Ele não ficaria um dia sem me ligar. A bomba foi saber que foram tantos os covardes que sacrificaram meu filho, fizeram o holocausto", disse a comerciante, em entrevista ao CORREIO, na tarde desta terça-feira (7). Procurado pela reportagem, o MP-BA reiterou que todo o inquérito, que possui 12 volumes, está sob análise da promotora Ana Rita Nascimento. "Estima-se que até o final do mês de agosto seja concluída a análise de todo inquérito policial pelo Ministério Público", completa a nota.

Por meio de sua assessoria, a pasta afirmou que recebeu o documento há cerca de 20 dias. Para quem já esperou tanto tempo, diz a mãe do garoto, aguardar pouco mais de 20 dias não significa grande coisa. "Olha, isso para mim é fichinha, sinceramente. Ainda que tardia, que a justiça possa existir". 

Conforme as informações do advogado da família, os PMs responderão por homicídio qualificado, sendo os qualificadores a ocultação de cadáver e o concurso de agentes - que pode ser definido como a concorrência de duas ou mais pessoas para o cometimento de um ilícito penal, ou seja, do crime.

Isto porque os agentes faziam uma operação final, como um teste, para obtenção do diploma de soldado. O inquérito da Polícia Civil denuncia dois tenentes, dois sargentos e 13 soldados-alunos. Procurada pelo CORREIO, a assessoria da Polícia Militar informou que aguarda uma resposta da corregedoria da corporação quanto aos indiciamentos. Por meio de nota, a Polícia Civil disse o inquérito foi concluído pelo Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP).

A pasta confirmou o indiciamento dos 17 policiais que participaram de uma operação policial na localidade de Vila Verde, onde Davi morava com a família, e disse que o documento foi encaminhado ao MP-BA em junho deste ano. Corpo de Davi nunca foi encontrado (Foto: Reprodução) 'É assim que a gente esquarteja' Rute lembrou que o filho, um adolescente descrito por ela como "tranquilo e curioso", havia saído para comprar pão na manhã de 24 de outubro.

"Ele saiu com uma vizinha, uma idosa. Ela viu tudo. Chamaram o nome de alguém, eles responderam que a pessoa não era Davi, mas eles levaram mesmo assim. Meu filho tinha parado para ver o que estava acontecendo, ver a operação, como qualquer criança curiosa. Depois, ameaçaram a moça, a testemunha, e tivemos que pedir proteção para ela", conta.

Embora tenha recebido diversas propostas de organizações para deixar Salvador, por uma questão de segurança, Rute Fiuza diz que nunca teve medo.

"Atualmente, eu não sei de ninguém ligado ao caso que vem sofrendo ameaças. Espero que não. Eu e minhas filhas vivemos tranquilamente, não temos medo de nada. Se qualquer ameaça acontecer, eu abro a boca. Jamais seria ameaçada e guardaria isso. Eu reúno toda imprensa e busco ajuda", relata ela, que não mora mais em São Cristóvão.

Para a mãe de Davi, a operação de treinamento que era realizada pelos PMs no dia mais triste de sua vida, como ela define, diz muito sobre a maneira como a Polícia Militar realiza suas operações."É muito claro. Eu acredito que tenha sido algo como: 'estão vendo aqui esse menino, vamos pegar ele. Observem, é assim que a gente mata, é assim que a gente esquarteja, é assim que a gente dá fim'. É essa a prática dela [PM], não há outra", diz Rute, em referência à motivação do crime.Ainda segundo ela, os policiais que pegaram o adolescente, embora não estivessem fardados, estavam à bordo de viaturas padronizadas. "Eu tenho cópias dos depoimentos. Foram de oito a dez viaturas, fora os carros sem padronização. Mas, ainda assim, eu cheguei a acreditar que pegaram ele por engano, que no outro dia ele voltaria, mas não. No domingo, eu já sabia que ele estava morto".

A certeza da morte do menino ficou ainda mais forte depois que ficou provado que a Polícia Militar tinha envolvimento na morte e esquartejamento de Geovane Mascarenhas, em agosto de 2014, dois meses antes de Davi sumir. "Eu chorei a dor do pai daquele jovem, mal sabia eu que 60 dias depois seria eu, chorando a mesma dor. A dor de perder meu único filho, meu menino lindo", disse ela, que é mãe de outras quatro filhas.

'Quero o corpo' Rute Fiuza já viveu a angústia de ter sua esperança posta à prova algumas vezes ao longo desses quatro anos. A comerciante contou à reportagem que nunca deixou de acreditar que ainda vai encontrar o corpo de Davi."Eu quero os restos mortais do meu filho. O Estado tem a obrigação de me dar os restos mortais de Davi. É o mínimo que eles podem fazer. Mas eu duvido muito que eles vão  conseguir isso com a investigação, porque os covardes não iam constituir provas contra eles mesmos, eles não vão falar. Mas eu quero, eu não vou desistir, eu vou encontrar", desabafou Rute, em lágrimas.A comerciante disse, ainda, que nunca enterrou o filho simbolicamente. "Nunca, mesmo sabendo que infelizmente fizeram isso com ele. Eu nunca fiz nada que chegasse perto de um enterro. Isso eu só faço com o corpo, com os restos de Davi, que só eles sabem onde colocaram. Eu espero que tenha restado alguma coisa do meu filho. Eu sei que ele foi sacrificado", completou ela. Rute Fiuza diz que só quer restos mortais do filho (Foto: Betto Jr./CORREIO) Renascimento Depois de perder o filho, a comerciante levou muito tempo para se reconstruir emocionalmente, mas conta que todo o processo foi instintivo. "Eu renasci em 2018. Foi algo que eu acordei e pensei: 'chega, eu preciso sair disso'. Eu vou esperar e não vou desistir, mas eu preciso viver porque ainda existe pessoas pelas quais vale a pena viver". 

O tempo que a polícia levou até concluir o inquérito foi, para Rute, uma das maiores dificuldades da família. "A falta de respostas. Isso é muito triste. Por isso que hoje, para mim, não traz qualquer alívio. A demora toda eu posso resumir com uma única palavra: corporativismo".

A mãe de Davi, que antes tinha em mente a missão de dar suportes que pudessem ajudar o filho a trilhar a sonhada carreira de jogador de futebol, hoje tem a tarefa de, tão somente, realizar a cerimônia de seu funeral. "Como todo menino pobre, ele só queria crescer e jogar bola. Eu, hoje, só penso em encontrar os restos mortais. Infelizmente, é o que eu posso fazer por meu menino".