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Da Redação
Publicado em 30 de setembro de 2022 às 05:15
- Atualizado há 2 anos
Em funcionamento desde 2011 e já tendo realizado mais de 6,5 mil partos humanizados, o Centro de Parto Normal (CPN) Marieta de Souza Pereira, que funciona na Mansão do Caminho, em Salvador, estava ameaçado de fechar. Funcionários e corpo técnico foram avisados disso na última sexta-feira (23), por um e-mail vindo da presidência. A mobilização da comunidade, porém, foi tanta que forçou a revisão da decisão e, na noite de ontem, por nota, a Secretaria de Saúde do Estado (Sesab) informou que, em reunião realizada também ontem, "ficou definida a continuidade das atividades" da unidade.>
A reunião a que se refere a nota aconteceu entre a secretária da Saúde do Estado, Adélia Pinheiro, e o diretor-presidente da Mansão do Caminho, Mário Sergio Almeida. A nota da Sesab traz: "Durante o encontro ficou definida a formação de um grupo de trabalho [que] fará um levantamento da situação da unidade e a partir disso discutirá estratégias para fortalecimento da unidade". >
É uma vitória para os não poucos que reconhecem a história desse espaço em atividade desde 2011. Uma história que teve seus alicerces abalados com o email que anunciava o fechamento da unidade. Mas as reações foram rápidas. >
A comoção frente à notícia do fechamento do Centro de Parto Normal Mansão do Caminho, como é popularmente conhecido, foi tanta que, em menos de dois dias, uma petição online denominada "Não fechem o CPN Mansão do Caminho" reuniu mais de 17 mil assinaturas, e contando. O perfil no Instagram já acumula quase seis mil seguidores entre ativistas, funcionários e mães que deram à luz na unidade. >
Foi essa grande repercussão nas redes sociais que "provocou" encontro entre membros da Sesab e do Centro Espírita, na tarde de ontem. Na ocasião, questionado sobre a situação atual e os desdobramentos, Mário Sérgio Almeida disse apenas que "a reunião com a Sesab foi ótima e iremos desenvolver parceria em conjunto". Já durante o encontro da tarde, Mário Sérgio Almeida negou que houvesse possibilidade de fechamento do espaço, apesar do e-mail enviado pelo diretor-médico, José Carlos Gaspar, dia 23.>
A unidade pertence à Mansão do Caminho e foi o primeiro Centro de Parto Normal da Rede Cegonha, estratégia do Ministério da Saúde que tem como finalidade estruturar e organizar a atenção à saúde materno-infantil no país. Era um desejo de Divaldo Franco, divulgador da doutrina espírita, liderança da Mansão do Caminho. >
Ana Júlia Ribas deu à luz o pequeno Bento no CPN em meio à pandemia (Foto: Acervo Pessoal) Na quarta-feira (28), portanto, antes da reunião, o Centro Espírita divulgou nota afirmando que o fechamento ou não da unidade estaria "distante de decisão final" e que estudos seriam feitos. Apresentou, porém, argumentos - como a lei que cria o piso salarial da enfermagem e a redução gradativa da quantidade de partos realizados no CPN - como complicantes para a continuidade dos trabalhos, já que havia implicações no aumento de custos e minoração dos repasses pela Sesab, com quem a unidade possui convênio em vigor>
Questionado, o diretor presidente da Casa do Caminho, Mário Sérgio Almeida, afirmou que não sabe ao certo o déficit do Centro de Parto, mas confirmou que entre 30 a 35 partos são realizados por mês. Ao todo, 65 profissionais trabalham no local. >
Responsável pelo bem-estar físico e emocional de quem vai parir, a doula Maiana Kokila, 41, no entanto, esclarece que é natural que haja períodos com maior e menor ocorrência de partos. "Existe aspecto de sazonalidade para qualquer maternidade. Por exemplo, novembro é um período em que os bebês nascem bastante, por causa do contexto de carnaval", explicou. Além disso, segundo ela, falta divulgação do serviço oferecido. "As pessoas nos arredores não sabem que não têm que fazer pré-natal lá para poder parir lá. Tem uma lacuna de informação sobre a capacidade do Centro de Parto Normal, o que ele oferta de segurança".>
Diante da ameaça de encerramento das atividades, o Ministério Público do Estado (MP-BA) foi acionado por ativistas e instaurou procedimento de apuração. O MP informou que expediu ofício ao diretor da unidade e à Sesab e agendou audiência para a próxima segunda-feira (3). Leilane Santos optou pelo parto humanizado no CPN (Foto: Acervo Pessoal) Antes da nota divulgada na noite de ontem, a Sesab já havia informado, também em nota, que não recomenda o fechamento do CPN da Mansão do Caminho e revelou que há um Termo de Adesão vigente desde o dia 9 deste mês. Os repasses, segundo a secretaria, estão em dia. >
A obstetra aposentada Marilena Pereira trabalhou no Centro de Parto Normal Marieta de Souza Pereira desde a inauguração até o ano passado. Segundo ela, em todos esses anos nunca houve indicativo de que o local seria fechado, mas sua manutenção sempre foi difícil. Ela diz ainda que o contato entre a gestão do Centro Espírita e a do CPN tem conflituos. >
"Em alguns momentos tiveram tentativas de cortes nos convênios de cooperação técnica. A gestão do Centro de Parto Normal e a gestão geral da instituição possuem formas diferentes de ver as coisas. Nunca houveram falas sobre fechamento, mas o relacionamento sempre foi muito conflituoso", disse Marilena Pereira. >
Especialistas e ativistas ouvidos pela reportagem explicam que diferentemente de uma cesariana, as mulheres que vão dar à luz em centros de parto ganham autonomia. "A assistência feita no Centro de Parto Normal é horizontalizada e a mulher é abraçada como co-responsável pelas decisões que são tomadas", afirma Maína Marinho Diniz, fotógrafa de parto e ativista pelo movimento de parto humanizado. >
Unidade Modelo Além disso, há uma questão social que deve ser levada em consideração. "Precisamos lembrar que todo esse aparato é do Sistema Único de Saúde (SUS). Hoje, a possibilidade de mulheres pretas de zonas periféricas conseguirem ter esse tipo de parto e serem respeitadas, é nesse Centro de Parto Normal. Precisamos manter ele aberto enquanto modelo para o país", defende Maína. >
São muitos os relatos de mães que tiveram boas experiências de parto na Mansão do Caminho. São experiências como a da produtora audiovisual Ana Júlia Ribas, 27 anos, que viria a dar à luz o pequeno Bento. Seu parto aconteceu em meio a um processo que durou quase dois dias e em um período crítico da pandemia, em dezembro de 2020, quando a vacina contra a covid-19 não tinha chegado ao Brasil.>
"Desde a equipe da limpeza às enfermeiras e aos próprios médicos, tratavam a gente com muito carinho", conta. "Depois disso [do parto], a gente ainda tem direito a uma consulta de avaliação, pra ver se tá tudo certo com o bebê, e eu fui atendida do mesmo jeito", detalha Ana Ribas. >
A relação com as pacientes cria um grande laço de afinidade, que acabou por resultar em toda movimentação que impactou na continuidade dos trabalhos da unidade. Relações como as de Ana Júlia, a de Leilane Santos — que festeja em foto a chegada de seu bebê — e de milhares de mães que se mobilizaram em campanha. Uma campanha vitoriosa.>
Brasil vive excesso de cesarianas Enquanto que a Organização Mundial da Saúde (OMS) estima uma proporção de cesarianas necessárias por motivos médicos entre 10% e 15%, no Brasil, mais da metade dos partos realizados são desse tipo. Na Bahia, conforme dados da Secretaria Estadual de Saúde (Sesab), de todos os nascimentos registrados no estado entre 2010 e 2022, 43,3% se deram a partir de cesarianas.>
Apesar de indispensável em alguns casos durante o trabalho de parto, como prolapso de cordão umbilical e posição córmica — quando o bebê está deitado —, há uma "lógica médica baseada em muita intervenção e abuso de tecnologia" e que "tende a atuar a partir da falsa sensação de que a cesárea é mais segura", alerta a antropóloga feminista Naiara Maria Santana, que integra a Rede de Humanização do Parto e Justiça Reprodutiva da Bahia.>
Ainda segundo ela, é necessário que as gestantes estejam melhor informadas tanto sobre a fisiologia do parto como sobre seu próprio corpo. >
"Falo da fisiologia do parto porque é importante que a gente saiba como isso acontece, quais são as suas fases. Isso evitaria que muitas mulheres buscassem as maternidades antes de o trabalho de parto estar mais evoluído, uma vez que as evidências científicas nos mostram que mais horas no ambiente hospitalar corresponde a mais intervenções desnecessárias", orienta a ativista Naiara Santana.>
No ano passado, a rede elaborou, com a vereadora de Salvador e candidata a deputada federal Marta Rodrigues (PT), um projeto de lei para implantar a Política Municipal de Atenção Obstétrica e Neonatal, que tem como objetivo o desenvolvimento de ações de promoção, prevenção e também assistência à saúde de gestantes, puérperas e das crinças recém-nascidas.>
Novo piso seria um dos problemas Apesar de ter sido suspenso por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), o novo piso da enfermagem custou R$ 56 mil à Mansão do Caminho no mês de agosto, de acordo com informação passada pelo diretor presidente Mário Sérgio Almeida. Segundo a nota oficial divulgada por ele, essa seria uma das adversidades que contribuíram para que o Centro de Parto Normal passasse por dificuldades. >
Após a declaração, o movimento Não Fechem o Centro de Parto Normal rechaçou o posicionamento e defendeu os trabalhadores da enfermagem. >
"Nos solidarizamos às enfermeiras obstetras, obstetrizes e toda a equipe técnica de enfermagem que jamais deveriam ser mencionadas como um peso para o funcionamento de uma assistência sustentada pelo seu trabalho de excelência e competência profissional", afirma o movimento em nota divulgada ontem. >
A média salarial dos técnicos de enfermagem hoje na Bahia é um salário mínimo, ou seja, R$ 1.212, enquanto enfermeiros com ensino superior recebem em média R$ 2 mil, de acordo com informações que foram cedidas pelo Conselho Regional de Enfermagem (Coren-BA).O novo piso salarial determinava um pagamento que variava entre R$2.375 e R$ 4.750, a depender da formação e atuação dos profissionais..>
Outras unidades filantrópicas de atendimento sediadas na Bahia, como são os casos da Osid e da Santa Casa, vêm afirmando não terem condições de vir a arcar com os novos valores dos pisos salariais, como já foi noticiado pelo CORREIO. >
*Com orientação de Monique Lôbo.>