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Da Redação
Publicado em 7 de maio de 2011 às 11:55
- Atualizado há 2 anos
Alexandre.Lyrio | Redação [email protected] das 22h e o doutor Luiz Von Söhsten curtia o descanso dos justos. Depois de um dia duro, acabara de chegar em casa. Sentou-se para jantar, respirou fundo e... o telefone tocou. Era Irmã Dulce. - Doutor, encontrei um doente na rua com o pé inchado, enrolado num saco. Olha, doutor, está fedeeeeendo. O que eu faço?O primeiro cirurgião a chegar nas Obras Sociais Irmã Dulce (Osid), em 1964, lembra bem daquela ligação. Rindo do que chamou de “capciosidade da freira”, ainda hoje colaborador das Osid, o médico reproduz a resposta. “Eu disse para ela: ‘Irmã, isso é uma gangrena. O que a senhora faz? Nada. Aliás, faz sim. Mande abrir o centro cirúrgico e ligue o ar-condicionado que eu estou indo’”. “Era assim. Com Irmã Dulce, não tinha hora para trabalhar”. >
Se Irmã Dulce é o Anjo Bom da Bahia, certamente não alcançaria esse posto sem os médicos. Até porque, mais do que oferecer comida ou abrigo, a freira queria dar saúde ao povo. E os homens de branco a acompanharam na empreitada. Alguns dedicaram boa parte da vida à causa da freira. Com eles, e também graças a eles, ela construiu o Hospital Santo Antônio, a maior unidade filantrópica da Bahia. Mas, até o atendimento atingir um estágio de profissionalismo, os médicos tinham que se virar. A maioria chegava como voluntário. Irmã Dulce entupia o lugar de doentes. Pegava na Estação Leste, antiga estação de trem da cidade, onde encontrava gente vinda do interior. Ameaças“Houve um tempo em que se colocou pacientes até no necrotério”, conta o também cirurgião Taciano Campos, que trabalha há 39 anos nas Obras e é hoje diretor médico do hospital. Os médicos dizem que cumpriam o juramento. “A gente ia fazer o quê? Deixar o cara morrer porque não estava num lugar adequado?”, questiona doutor Taciano. Tantas improvisações quase obrigaram o hospital a parar de atender. Não foi uma, nem duas vezes, que um dos antigos presidentes do Conselho Regional de Medicina da Bahia (Cremeb) ameaçou fechar a unidade. - Eu vou mandar fechar aquele hospital... Onde já se viu ter uma freira como diretor médico?A intimidação era direcionada a Von Söhsten, que confidenciou o fato ao CORREIO. O então presidente do Cremeb, cujo nome ele não revela, nunca cumpriu a ameaça. “Pior é que ele estava certo. Quem ia pegar um hospital sem dinheiro e cheio de doentes? Só Irmã Dulce tinha coragem de segurar aquilo”, diz.Era consenso entre os médicos: um dia o improviso tinha que dar lugar à gestão profissional. Mas, até lá, acontecia de tudo. Os “arranjos” eram inevitáveis. “Quantas vezes operei pacientes sem fazer exames? Não tínhamos laboratório. Sem anestesista, em alguns momentos, eu mesmo me arriscava a fazer isso”, diz Von Söhsten. Pão de ló Apesar de tudo, Irmã Dulce tinha a equipe nas mãos. E fazia com carinho. “Irmã Dulce tratava os médicos a pão de ló. Cafés da manhã caprichadíssimos. No almoço, era camarão, siri-mole, filé. A gente fazia fila para almoçar no hospital. Tudo para agradar aos que ela considerava ‘enviados de Deus’”, lembra o reumatologista Carlos Geraldo, que trabalha nas Osid desde os anos 80 e hoje coordena a clínica médica. “Impossível ser estritamente profissional com Irmã Dulce. Era uma mãe para todos nós”, completa Taciano. Junto com Von Söhsten, Taciano está entre alguns dos primeiros médicos da casa. Antes deles, chegaram Bernardino Nogueira, então estudante de Medicina, e Edgard Meyer. Nessa época, o Santo Antônio ainda não existia. Bernardino e Edgard atendiam numa casa de palafitas nos Alagados, onde Irmã Dulce iniciou o trabalho de caridade, ainda nos anos 1930. “Alguns doentes nem os médicos se aproximavam. Só irmã Dulce”, diz Taciano. A estruturação foi conquistada aos poucos, mas não quem mandava. “A freira continuou a controlar tudo. Até o fim”. Saúde milagrosaOs mesmos médicos que acompanharam Irmã Dulce anos e anos, hoje não têm qualquer dúvida de que ela fazia milagres. Homens da ciência, eles mesmos não têm explicações para muitos fatos. “Como médico, afirmo que o primeiro milagre de Irmã Dulce, o mais evidente, foi ela conseguir viver do jeito que viveu com a saúde que tinha”, assevera doutor Taciano Campos. O enfisema pulmonar dela, afirma ele, impediria qualquer um de viver com tamanha disposição. Numa das várias crises pulmonares que a freira teve, Taciano não acreditou no que aconteceu. “A crise era terrível. Ela estava no quarto com falta de ar, febre e torpor. Fiz o que pude e dei uma passadinha no consultório. Cansado, sem perceber, caí num cochilo. Acordei assustado e voltei correndo para vê-la. Tomei outro susto. Ela não estava mais na cama. Achei que havia morrido e já tinham levado o corpo”, relata. “Que nada! Em poucas horas, tinha se recuperado e estava trabalhando. Ninguém se recupera daquela forma”, diz o doutor. Também havia o milagre de tirar tudo do nada.A multiplicação de alimentos era sempre presenciada pelos médicos. “Uma vez, ela me chamou para mostrar a situação da despensa. Só duas laranjas murchas. ‘Olhe para isso, doutor’. Tinha umas cem pessoas para alimentar. Fiquei assustado e desci para o centro cirúrgico. Quando voltei, fui logo perguntando: ‘E aí irmã?’. ‘O almoço está pronto, doutor’, ela respondeu”.Hospital Santo Antônio é referência em ensinoRecém-formado médico cirurgião, doutor Von Söhsten estava doido para operar. Foi quando trabalhava em um estágio em um pronto-socorro, viu Irmã Dulce com um doente e soube da existência do Hospital Santo Antônio. Um hospital quase sem médicos e, com certeza, sem cirurgião. “Opa, é pra lá que eu vou”, pensou logo o médico. Ele chegou lá como voluntário e, mais que ensinar, aprendeu quase tudo que sabe hoje. Desde sempre, uma das características do Santo Antônio é a excelência no ensino. “Isso por conta do volume de doentes. Quem opera 500 vesículas, conhece mais do que quem opera 50”, diz doutor Taciano, também cirurgião. Hoje, o Hospital Santo Antônio é certificado pelos ministérios da Saúde e Educação como hospital de ensino. São 145 residentes - que estão em treinamento - e, em toda as Osid, cerca de 400 médicos. “Todas as universidades querem mandar alunos para cá”, garante Von Söhsten. É assim desde Irmã Dulce. “Antigamente, os médicos saíam daqui com fama de terem trabalhado com Irmã Dulce. ‘Sou filho da velha’, diziam.>