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Da Redação
Publicado em 15 de setembro de 2022 às 05:15
- Atualizado há 2 anos
Após os anúncios do encerramento das atividades do Colégio Isba, ao fim de 2020, e do início da demolição do prédio onde funcionava a instituição, no dia 1º de agosto, restaram aos ex-alunos, professores e demais funcionários apenas as memórias vividas naquele local. O que eles não imaginavam é que essas lembranças correriam o risco de ficar só no campo da imaginação.>
No último dia 6, circularam, em um grupo no WhatsApp formado por antigos membros da escola e do centro universitário, o Unisba, imagens do que parecia ser parte do acervo do instituto abandonado em um galpão. Entre o material, reunido durante as mais de cinco décadas de serviços prestados pelo Colégio Isba na educação básica, estão, por exemplo, fotos, anuários, fardas antigas, fitas VHS e livros.>
Para a surpresa e decepção de todos, a informação foi confirmada por uma pessoa próxima à estudante Karina Santos, 23 anos, ex-aluna do colégio. Não só se tratava de documentos relacionados à comunidade do Isba como também estava a cerca de 27 quilômetros de seu local de origem, o bairro de Ondina, em Salvador.>
O acervo foi parar no quartel do Corpo de Bombeiros em Simões Filho, na região metropolitana, onde, além de serem registradas ocorrências, funciona o Departamento de Ensino e Pesquisa do Corpo de Bombeiros Militar da Bahia (CBMBA). Lá, segundo a assessoria da corporação, são realizados cursos do CBMBA — tanto os da capital como os do interior —, e é, também, onde fica o material do CBMBA relacionado a estudos e pesquisas.>
Por meio da amiga, que não quis ser identificada, Karina pôde amenizar a aflição instaurada no grupo. “Falei com essa pessoa e tive a confirmação do material no local”, conta. Assim, ex-alunos e funcionários conseguiram entrar em contato com agentes do Corpo de Bombeiros em Simões Filho — que, por sua vez, teriam informado que o material seria incinerado —, e uma nova mensagem enviada ao grupo pelo WhatsApp garantiu que o acervo será recuperado.>
“O material do Isba não vai ser mais incinerado”, diz. “Existe um corpo de alunos que vai fazer, exatamente, todo o processo de catalogar esse material”, continua. Ainda não se sabe, porém, como o material foi levado para aquele galpão. Acervo foi encontrado em galpão do Corpo de Bombeiros em Simões Filho (Foto: Reprodução) O Centro de Recursos Tecnológicos (CRT), como era chamado, era o setor que abrigava, na escola, fotos e filmagens de eventos realizados na instituição, além de outros itens. “Lá [no CRT], tinha um acervo da escola desde a fundação.” É o que relata a secretária escolar Manuela Caldas, 46 anos, que trabalhou no Isba durante 25. Entre o colégio e o centro universitário, ela e duas colegas de outro departamento permaneceram no instituto até o ano passado, mesmo após o encerramento das atividades prestadas pela Associação Brasileira de Educação Familiar e Social (Abefs).>
Uma delas, que não aceitou falar com a reportagem, participou da separação do material. “[Uma das colegas] Ela me disse que tudo isso foi embalado nessas caixas azuis (primeira foto) e seria levado desse lugar, que funcionava no quinto andar do prédio demolido, para o da Abefs, que é onde, hoje, funciona, no térreo, a Abefs, e, na parte superior, a residência das irmãs [freiras, da associação]“, revela.>
Valorização da história O que, para uns, pode parecer saudosismo, um apego exagerado ao passado, é, para o ex-aluno Caio Marques, 37 anos — hoje, gerente de TI e morando no interior de São Paulo —, valorizar a história. “Mais de meio século. Imagina quantos pais estudaram lá e, depois, tiveram os seus filhos, que também estudaram lá”, destaca ele sobre os 56 anos de atuação do Isba na educação básica.>
Outro elemento apontado por Caio é o vínculo criado entre a instituição e as pessoas que por lá passaram. “Eu moro em São José dos Campos, e a gente fala com os amigos da mesma idade, e eles não têm essa relação tão afetiva com seus respectivos colégios”, acrescenta.>
Ao contrário da situação apresentada com o aparecimento de parte do acervo em um galpão, a escola sempre prezou pela preservação das memórias dos estudantes, assegura o gerente de TI, trazendo o exemplo dos anuários que eram confeccionados. “Olha o cuidado de você catalogar, durante todo o ano, todos os acontecimentos, para, no final, entregar para toda a comunidade um ‘book’ de tudo o que ocorreu. É algo que não é comum.”>
Para Caio Marques, que era bolsista, aliás, ter estudado no Isba foi ter a oportunidade de acesso a um ensino cuja qualidade, talvez, a vida não lhe proporcionasse naquele momento. “O Isba não foi só um colégio para aquelas pessoas que estudaram ali. É uma instituição que tinha um papel tão importante na formação de pessoas, inclusive, que não podiam pagar por aquele ensino”, conclui. Depois disso, Caio pôde fazer faculdade, estagiar e ser efetivado em um cargo no Unisba, onde trabalhou entre 2004 e 2011. Atualmente, ele é executivo de uma multinacional americana.>
Diferentemente de Caio, o jornalista Carlos Leal, 47 anos, foi apenas colaborador do Isba. Mas, assim como ele, defende a preservação da história do instituto. Carlos trabalhou lá durante nove anos, até ter sido demitido, em maio do ano passado. Quando foi desligado, o acervo do CRT já não estava no mesmo local de sempre.>
“Eu tinha transferido tudo para uma sala no centro universitário, certamente, acredito, porque já tinha essa pretensão de vender o Isba.” Segundo ele, a antiga gestão visava providenciar um espaço que serviria para resguardar a história da instituição. “Eu já tinha, inclusive, visitado outras escolas, para conhecer os memoriais e ver de que forma a gente ia fazer, buscando ajuda de profissionais também”, conta.>
No entanto, com a circulação das imagens no referido grupo no WhatsApp, do qual faz parte, o jornalista teve uma surpresa. “Fiquei triste quando soube desse fato. É um descaso. Trabalhei lá por nove anos, e meu sonho era montar esse memorial. É história”, desabafa.>
Feito o desabafo, Carlos Leal se mostrou mais otimista, em razão da recém-chegada notícia de que o acervo será recuperado. “É uma pena, mas eu acho que os alunos, com esse movimento, vão conseguir resgatar esse material. E, se precisarem de mim para alguma coisa, ‘tô’ aqui pra ajudar também”, se prontifica.>
Descuido com acervo vai de encontro a lei Aprovada em agosto de 2018 e vigente dali a dois anos, em 2020, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) determina como empresas públicas e privadas devem tratar, no meio físico ou no digital, dados pessoais de qualquer cidadão que esteja no país. No caso de uma instituição de ensino, como era o Isba, a coleta desses dados faz parte do processo de matrícula de alunos e colaboradores, explica a advogada de Direito Digital Ana Paula de Moraes.>
Mas a questão gira em torno de como eles serão armazenados, distribuídos ou, até mesmo, descartados. “A imagem é um direito pessoal, que torna a pessoa identificável. Então, ela está salvaguardada pela LGPD”, pontua. “Esse descarte [suposto, das fotos], para fazê-lo de forma correta, você deveria, primeiro, providenciar a digitalização de todo esse material, já que não queria mais ou não teria mais espaço físico para guardar tudo isso, e, em ato contínuo, informar todas as pessoas envolvidas e titulares dessas imagens”, continua.>
A especialista alerta que, devido ao fato de, praticamente, todos os registros contidos no acervo pertencerem a menores de idade, a Abesf, responsável pelo tratamento desses dados, pode vir a ter complicações mais sérias. “A gente sabe que a imagem de uma criança ou adolescente, no mundo clandestino da internet, vale milhões.”>
Mesmo que ainda não se saiba como o material coletado foi parar num galpão a 27 quilômetros de seu local de origem, a falta de resposta, por si só, já configura um ato de descuido. “[A entidade] Ela assume, pra si, uma responsabilidade conforme o Código Civil: aquela pessoa que age com negligência, imprudência ou imperícia e causa danos a outra pessoa, ela é responsável pela atitude dela”, finaliza.>
De acordo com o governo federal, falhas de segurança podem resultar em multas de até 2% sobre o faturamento anual da organização no Brasil, com um limite de R$ 50 milhões por infração. A Autoridade Nacional de Proteção de Dados Pessoais (ANPD) estabelece níveis de penalidade conforme a gravidade e emite alertas e orientações antes da aplicação de sanções.>
Por telefone, o CORREIO tentou, sem sucesso, entrar em contato com a Abefs, responsável, até 2020, pela manutenção do Colégio Isba e do Centro Universitário Social da Bahia (Unisba), antiga Faculdade Social da Bahia.>
Segundo consta no perfil do colégio, inativo desde outubro do ano passado, a unidade foi descredenciada da Secretaria estadual da Educação (SEC) por iniciativa da então mantenedora, e a deliberação do Conselho Estadual de Educação (CEE-BA) foi publicada no Diário Oficial no dia 24 de agosto de 2021.>
Novo mantenedor do Unisba, o Grupo Educacional Faveni também foi procurado e respondeu, por meio de sua assessoria, que ‘todo o material do colégio tinha sido entregue devidamente para a Secretaria da Educação’.>
Além do centro universitário, o grupo comprou o prédio central e as torres onde funcionavam a área clínica e a área de saúde da universidade. O teatro também foi adquirido pela empresa, mas, ao contrário dos espaços acadêmicos, ainda não foi reativado.>
Já a empresa que comprou o colégio — que, de acordo com funcionários que trabalham em sua demolição, é do ramo imobiliário — não teve o nome divulgado até o momento.>