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Thais Borges
Publicado em 2 de outubro de 2018 às 15:00
- Atualizado há 2 anos
Bernardo* tinha problemas para se concentrar. Na sala de aula, olhava para o quadro, mas, bastava que um colega na carteira ao lado pegasse um lápis para que toda a sua atenção fosse desviada. “Quando ia escrever o que a professora anotava no quadro, saía tudo errado. Se a frase era: ‘ela viu’, eu botava ‘viu ela’. E ficava voando”, conta. >
Isso mudou há dois anos, quando ele foi oficialmente diagnosticado com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e passou a fazer tratamento com o medicamento Ritalina, remédio controlado cujo princípio ativo é o cloridrato de metilfenidato. Bernardo ficou mais focado, começou a prestar atenção nas aulas e as notas subiram. Até que, no mês passado, os sintomas voltaram. Não tinha mais remédio: a Ritalina tinha desaparecido das prateleiras das farmácias de Salvador. >
A situação é complicada: o CORREIO procurou 20 farmácias, em 20 diferentes locais da cidade, e 17 não tinham nenhuma forma do medicamento. Uma delas, na Vila Rui Barbosa, tinha a versão genérica; outra, em Ondina, tinha apenas a Ritalina LA (que chega a custar quase dez vezes mais do que a comum). Entre as procuradas, somente a Drogaria Globo de Stella Maris tinha os dois tipos. >
E, mesmo assim, era bom correr. A atendente, por telefone, chegou a oferecer uma reserva que duraria até esta terça-feira (2). “Tinha chegado uma caixa e voou. Agora, a gente conseguiu mais alguns. A gerente foi buscar em outra loja, porque está tendo muita procura”, explicou, pedindo desculpas por não poder reservar mais tempo do que isso. >
No restante, o discurso era quase sempre o mesmo: não tem há pelo menos um mês e não há previsão para chegar. “Ô, flor, aqui em Salvador está complicado nas farmácias. Não tem em nenhuma delas. Tenho visto o pessoal falando que compra pela internet, mas não sei como”, se desculpou uma funcionária. Outro chegou a procurar no estoque, mas também voltou pedindo desculpas. “Fui olhar só para ver se já tinha chegado, mas está há quatro meses assim”. >
Em uma farmácia de São Marcos, a atendente disse que o problema começou há mais de um mês. “Toda hora o telefone toca e é o pessoal procurando. O negócio está roxo”, contou. Alguns estabelecimentos chegaram a informar que já sentem o problema de desabastecimento há quase seis meses. No Cabula, uma funcionária esperançosa disse que existia a expectativa de normalização agora em outubro.“Já tem uns seis meses que a gente não acha, mas tínhamos algumas caixas ainda. Vendemos tudo e tem uns três meses que não tem nada”. Troca de medicamentos Bernardo ficou três dias sem nenhum medicamento. A avó, a pedagoga Conceição Mesquita, 60, passou quase uma semana procurando pela Ritalina LA em todas as farmácias possíveis. A médica, então, trocou a receita: indicou uma segunda opção, caso a Ritalina continuasse desaparecida. >
E foi assim que, desde o mês passado, o adolescente usa o remédio Concerta, também feito com o cloridrato de metilfenidato. O valor é mais alto – enquanto ela paga cerca de R$ 240 na Ritalina, diz que compra o Concerta por cerca de R$ 300. Para Bernardo, porém, a diferença não está só no preço. “Esse novo não é igual. Não me sinto bem usando. O efeito da Ritalina é melhor, me concentro mais. Espero que logo volte a Ritalina de novo”. >
A vice-diretora e coordenadora da Escola Municipal de Periperi, Celeste Oliveira, sentiu o impacto da falta de Ritalina na rotina dos alunos. Ela não sabe precisar quantos dos 1,2 mil estudantes fazem tratamento com o medicamento, mas estima que cerca de 80 precisem de algum atendimento específico. Desde que a Ritalina desapareceu, tem alunos que até precisaram se afastar das aulas. “A consequência do não uso da Ritalina é que não é garantido o direito dele de convívio na escola, que é importantíssimo. Tem aluno que vem nos dias que está mais tranquilo e, a depender das condições, a gente faz um atendimento especial. A escola precisa mudar as estratégias porque não é que ele não queira, é porque ele não consegue ficar mais de 20 minutos numa mesma atividade, por exemplo”. No entanto, de acordo com a psicóloga Lygia Viégas, membro do Fórum Nacional sobre Medicalização da Educação e da Sociedade, é preciso ter cautela quanto ao próprio diagnóstico do TDAH. Ela diz que o fórum investigou o consumo da Ritalina entre 2007 e 2014 e identificou que ele diminui drasticamente nos meses de férias escolares. “É um medicamento tarja preta cuja eficácia é colocada em dúvida na bula e está sumindo das prateleiras por aumento de um consumo fora do diagnóstico, por concurseiros, vestibulandos”, alerta. >
Demanda maior do que a prevista Ao CORREIO, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) informou que, em julho, a empresa que detém o registro da Ritalina, a Novartis Biocências S.A., relatou que a descontinuação de fabricação/importação do medicamento foi devido a uma situação de curto prazo - houve uma demanda maior do que a prevista, em maio. Isso impossibilitou uma reação rápida. >
“Em julho, a empresa notificou a reativação de fabricação do medicamento e informou que lotes de Ritalina 10mg estariam disponíveis ainda em julho e lotes de Ritalina LA em agosto. A Anvisa está monitorando a situação desse medicamento no mercado e a empresa foi notificada para prestar esclarecimento. Caso seja constatada a infração, serão tomadas as providências cabíveis”, diz o órgão regulador. >
Em nota, a Anvisa ainda destacou que o mercado de medicamentos é dinâmico, com flutuações devido a procedimentos como importação e cadeia de distribuição. Isso poderia levar a faltas eventuais de produtos em alguns pontos de venda, mas não necessariamente que eles não estejam mais sendo fabricados. >
“No entanto, em casos de indisponibilidade de algum medicamento, independente da razão, recomendamos que o usuário procure o médico prescritor para que haja substituição segura do medicamento prescrito e continuação do tratamento até que a situação se normalize”, completam. >
De fato, a rede de distribuição de medicamentos é tão complexa que problemas como esse podem acontecer – e vêm acontecendo não apenas com a Ritalina, de acordo com o vice-presidente do Sindicato dos Farmacêuticos da Bahia (Sindifarma-BA), José Jorge Silva Júnior, professor de Farmácia da Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs) e da Unifacs. >
“Você tem o controle alfandegário dos produtos, porque a maioria deles é importado. É um problema o fato de o Brasil não produzir esses insumos. Isso faz com que a gente fique refém”, explica ele, citando, ainda, taxas de variação de câmbio e o controle sanitário. Além disso, nem sempre pequenas farmácias conseguem competir com grandes redes – que, por vezes, compram grandes lotes de uma vez. >
Quando não tem medicamento disponível, o jeito é buscar um remédio alternativo. Mesmo assim, é preciso ter cuidados.“Pode ser que os profissionais de saúde utilizem alternativas da mesma classe terapêutica mas que tenham uma diferença de potência grande, o que pode gerar uma piora no quadro clínico”. Através da assessoria, a Novartis, empresa responsável pela Ritalina, informou que, por ser um produto controlado e com retenção de receita, a disponibilização do medicamento “segue rígidos processos de exportação e importação, que incluem a existência de cotas pré-estabelecidas pelo órgão regulador”. >
A Novartis destacou, ainda, que os remédios têm prazo de validade curto (12 meses para Ritalina e 15 meses para Ritalina LA), o que prejudica formação de estoque de longo prazo. Além disso, como o processo de produção, logística e distribuição é complexo, a falta temporária gera um aumento de demanda – ou seja, preocupado, o paciente passa a fazer estoques preventivos. >
A empresa informou que, desde que detectou a situação, notificou a Anvisa de forma preventiva, em junho, e buscou alternativas para retomar o abastecimento a partir de 24 de julho. Essas alternativas incluem o abastecimento por transporte aéreo.>
“Entretanto, a procura do produto em níveis muito acima da média dificulta o atendimento completo da demanda. Dessa forma, a Novartis reforça que está empenhada em seu compromisso de regularização desse fornecimento aumentando ao máximo sua produção, importação e distribuição”, informam. >
Entenda o que é a Ritalina A Ritalina é um medicamento indicado para tratamento de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e outros transtornos como dislexia e dificuldades de aprendizado. É um remédio tarja preta, mas com um controle diferente. “O receituário dele é amarelo. É uma receita classificada como ‘A’. Para comercializar, as farmácias têm que dar entrada na vigilância estadual. Tem um controle maior do que outros medicamentos”, explica o com o vice-presidente do Sindicato dos Farmacêuticos da Bahia (Sindifarma-BA), José Jorge Silva Júnior. Ele critica a imagem criada de que a Ritalina ajudaria no desempenho intelectual. “Não tem nada disso, inclusive, pode causar a dependência, além de estimular um mercado informal dessa substância. Estimula o tráfico, o contrabando”. >
A Ritalina comum custa cerca de R$ 30. Já a Ritalina LA costuma variar de R$ 200 a R$ 250. >
Medicamentos podem vir acompanhados de psicoterapia O psicólogo e neurocientista clínico Dagoberto Bonavides explica que existem outros tratamentos para o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), a exemplo da terapia cognitiva comportamental.>
Esse tratamento costuma ser combinado com medicação, além de terapia com os pais da criança. “Os pais precisam compreender o TDAH para que não exijam da criança aquilo que ela não tem condições de responder. Esses pais precisam entender que existe uma dificuldade que a criança está passando que não se resolve com um castigo. Não se trata de falta de obediência da criança”, pondera. >
De acordo com ele, algumas escolas já fazem esse tipo de acompanhamento. Bonavides é o autor da regulação emocional primária, um tratamento de educação de emocional que ajuda a diminuir a ansiedade e a desenvolver melhor a atenção. “Independente do remédio, a gente pode usar hoje alguns recursos para melhorar o aspecto da ansiedade”.>
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