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Thais Borges
Publicado em 17 de maio de 2025 às 05:00
Por quase seis anos, a trancista Juliana dos Santos, 27 anos, usou o cabelo natural - crespo e com cachos. Quando o movimento da transição capilar ganhou força no Brasil, em meados da década passada, ela chegou a cortar no estilo ‘joãozinho’ para se livrar das químicas de alisamento que usava desde a infância. Até que, no fim de 2021, após ter filho, quis voltar a ser lisa. >
"Eu não me reconhecia mais. Ainda sem química, não gostei do cabelo curto e decidi alisar. Estava me incomodando muito porque não estava me sentindo bonita, acho que pela baixa autoestima do puerpério. Mas, desde então, não tive arrependimento (por voltar ao alisamento)", conta. >
No começo, ela fazia a ‘selagem térmica’ - um método considerado mais leve, mas com menor capacidade de alisamento. Neste último ano, contudo, trocou para a escova progressiva tradicional. E, com a mudança, vieram reações. "Esse ano, tive descamação. O couro cabeludo ardia muito, a ponto de pinicar, e cheguei a ter palpitação. Eu sentia desde o começo da aplicação, na primeira pincelada", diz ela, que teve que buscar outro produto e aumentar a frequência entre os retoques para quatro meses. "Me sentia muito mal". >
O movimento de Juliana - de retorno ao alisamento após anos de transição - não é isolado. A tendência tem crescido nas plataformas digitais como TikTok e Instagram - as justificativas vão desde a falta de identificação com o novo visual e falta de adaptação à rotina de cuidados até o retorno da estética dos anos 2000. >
Enquanto isso, a escova progressiva voltou a ganhar protagonismo e fazer com que relatos de eventuais reações ao produto também sejam mais comuns, ainda que, segundo especialistas, não devessem ser. No entanto, um caso mais grave de intoxicação após uma progressiva ácida colocou médicos, cabeleireiros e adeptas do método de todo o país em alerta. >
No mês passado, a consultora comercial Adrielly Silva, 32, passou sete dias internada com insuficiência renal e teve que fazer hemodiálise depois do alisamento, em Fortaleza (CE). Os riscos da escova progressiva, contudo, não se restringem às clientes. Para os profissionais, pode ser ainda pior, já que a exposição é praticamente contínua. >
A lesão renal por essas substâncias não é descrita com muita frequência, de acordo com a médica dermatologista Marília Acioli, professora da Unifacs e uma das fundadoras da Áurea Dermatologia Integrada. "Esse caso é mais raro. Os principais efeitos colaterais estão relacionados à falta de ar, ardência nos olhos, cansaço para respirar, pelo contato com o vapor quando essas substâncias ficam aquecidas. O outro efeito é direto sobre a pele, principalmente no couro cabeludo", explica. >
Química>
Desde o surgimento das primeiras escovas progressivas, o método caiu nas graças de quem gosta dos fios alisados. A progressiva surgiu no fim dos anos 1990, no Brasil, mas só se popularizou nos anos 2000. "Até 2010, existia uma vasta gama de escovas: de chocolate, morango, marroquina. Eram infinitas nomeclaturas e todas tinham, em sua composição, o formaldeído", explica a química Ana Carolina Longoni, que estudou a química capilar em sua pesquisa de mestrado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e atua como cabeleireira há sete anos. >
Mais conhecido como formol, o formaldeído é um gás incolor, tóxico e cancerígeno, ainda que muito usado na indústria. A substância foi proibida pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), em concentrações maiores do que 0,3%. "Mas isso não tem potencial alisante, que é o que as mulheres costumam querer no procedimento", acrescenta ela, que é doutoranda em Ciências dos Materiais. >
A partir daí, segundo a pesquisadora, diferentes marcas começaram a lançar as chamadas escovas progressivas orgânicas. Neste contexto, ‘orgânico’ nada tem a ver com o senso comum da área de alimentos, que costumam ser aqueles sem aditivos químicos, mas está relacionado à química orgânica (a área da química que estuda moléculas com carbono).>
"Você tem então escovas de ácido lático, ácido acético e uma vasta gama com propriedades de selar o fio e reduzir o volume, mas sem dar o efeito liso absoluto que o formol dava. Entre essas escovas de ácidos orgânicos, a gente tem nomenclaturas como botox capilar, cauterização, acidificação, da mesma forma que se tinha até 2010 muitos nomes para as progressivas", pontua. >
Outra substância que tem propriedade alisante é carbocisteína, que é permitida pela Anvisa para esse fim. O problema da carbocisteína, e que faz com que muita gente não goste dela, é que tem potencial de mudança na coloração do fio, porque atua dentro do córtex capilar. >
E, há, ainda, a escova progressiva que tem ácido glioxílico - o mesmo que foi usado pela consultora comercial Adrielly Silva, que fez hemodiálise em Fortaleza. Apesar de ser comum em produtos capilares, esse composto não é permitido pela Anvisa. >
"Quando se aquece a substância, ela gera moléculas parecidas com o formol e pode acabar entrando na corrente sanguínea", diz Ana Carolina. Mas, da mesma forma que o ácido glioxílico existe, há tanto escovas que levam formol quanto uma busca por alisamentos por formol, quando as clientes chegam a dizer que ‘apenas formol é capaz de alisar seus cabelos’. >
"Eu não trabalho com nenhuma dessas escovas, principalmente pela minha saúde. Faço as progressivas com ácidos orgânicos e sou bem franca com as minhas clientes. Não proponho um liso absoluto, porque não vai entregar isso, mas um cabelo controlado que vai conseguir secar e diminuir o frizz". >
No Brasil, atualmente, são permitidas como alisantes as substâncias: ácido tioglicólico e seus sais, ésteres do ácido tioglicólico, hidróxido de sódio ou potássio, hidróxido de lítio, hidróxido de guanidina, sulfitos e bissulfitos inorgânicos e pirogalol. O ácido glioxílico ainda está em análise pela Anvisa. Contudo, tanto cabeleireiros quanto médicos e cientistas afirmam que há casos de profissionais que adulteram a composição de escovas progressivas e adicionam formaldeído por conta própria. >
"As pessoas têm que avaliar o produto, o rótulo e se o profissional que preparou é da área química. Tem que usar de acordo com o que está especificado no rótulo", reforça o presidente do Conselho Regional de Química da 7ª Região (CRQ-7), Antonio Cesar de Macedo. >
Além de conferir se a empresa que produziu a escova tem registro na entidade, é importante ter cuidados de segurança no manuseio. "Tem que usar luva e máscara de proteção. O local deve ter sistema de exaustão, porque a gente sabe que às vezes o salão é um lugar pequeno, apertadinho. O risco não é só para a pessoa que está fazendo a chapinha, mas até para os outros clientes, porque o ambiente fica contaminado com esses gases", acrescenta. >
Renal>
Ainda que as reações mais comuns sejam alergias e enjoos, não foi a primeira vez que algo mais grave ocorreu após a progressiva. "No ano passado, na França, já foi feito um alerta para essas substâncias para fazer alisamento causando a insuficiência renal. Isso poderia ser evitado se tivessem sido usadas as substâncias liberadas pela Anvisa", pondera a médica dermatologista Anyara Franco, professora de Medicina na Faculdade Inapós, em Minas Gerais. >
Qualquer exposição a produtos químicos pode, em alguma instância, levar a danos em órgãos como fígado e rins, que são importantes para a filtração do sangue e depuração de toxinas, como explica o médico nefrologista Andrei Alkmim Teixeira, coordenador do curso de Medicina da Inapós. >
"Na questão do ácido glioxílico, o problema é que ele pode ser absorvido e, pela temperatura, pode liberar formaldeído. Esse tipo de coisa a gente sabe como começa e não sabe como termina. Podemos ter uma paciente que não tem problema de saúde e pode estar tendo um evento adverso dependendo do tamanho da exposição. Mas se a pessoa já vem com alterações da função renal prévias e ainda é exposta a esse tipo de situação, a gravidade tende a ser maior", adverte. >
À imprensa do Ceará, a consultora que fez hemodiálise contou que, quando começo a sentir as dores, tomou um remédio anti-inflamatório. A automedicação piorou o quadro, porque contribuiu para que os rins parassem de funcionar. "Por isso, a gente deve estimular à população a buscar assistência para saber como está a saúde dos rins e se tem fator de risco para insuficiência renal. O rim, muitas vezes, é silencioso. O paciente já pode ter um grau de função renal alterado e, se, além disso, for se expor a agentes químicos externos, a proporção pode ser muito maior", completa o nefrologista. >
Mesmo reações mais leves, como vermelhidão, bolhas e ardência - podendo se transformar em feridas - não são um bom sinal, como destaca a dermatologista Marília Acioli. "Quando atendia em emergência, eventualmente tinha pacientes com lesões no couro cabeludo por causa do contato direto. A pessoa faz uma dermatite de contato irritável, uma lesão aguda na pele", explica. A descamação, inclusive, é uma alergia. "Se existe essa descamação, o ideal é buscar outro alisamento", diz Marília. >
Quanto maior a frequência da progressiva e menores os intervalos, maiores a chances de danos. Além disso, o uso prolongado pode levar a um cabelo mais danificado e ressecado, segundo a dermatologista Anyara Franco. "Você tem uma falsa impressão que ele está cuidado, porque ele faz uma capa por fora, deixa brilhoso. Mas a hora que isso vai sair, você vê a condição que o cabelo está danificado".>
Cuidados>
Mesmo com o passar dos anos e as mudanças estéticas, a progressiva ainda reina absoluta na maioria dos salões. "Hoje, de 100 clientes, 99 procuram a progressiva, porque elas deixam o cabelo realmente muito liso, com aquele aspecto japonês brilhoso". diz a vice-diretora da Escola de Cabeleireiros da Bahia, Adeildes Pereira Rêgo. "Mas o uso constante vai trazer consequências danosas, porque vai afinando o cabelo", alerta. >
Outra recomendação é fazer um teste de mechas antes da aplicação do produto. Para saber se o cabelo vai responder bem, deve-se escolher uma mecha no topo da cabeça e na frente - áreas onde o cabelo fica mais exposto às intempéries. "O que a gente indica aos alunos é que não usem nenhum produto muito perto do couro cabeludo, porque já é a pele", reforça. >
Nem sempre, contudo, as clientes têm noção de que podem ter alguma reação. "Cabe ao profissional deixá-la atenta sobre isso, fazer um histórico e saber como ela lida com o cabelo. A reação natural, quando o produto tem contato com a pele, é a ardência suave. Mas não chega a incomodar tanto. Se houver incômodo, a recomendação é lavar em abundância e interromper imediatamente o processo". >
A personal trainer Deise Daltro, 23, já teve descamação do couro cabeludo alguns dias após fazer a progressiva, mas nunca considerou que era algo forte. "Sempre fiquei muito tranquila com isso, porque nunca chegou a ser algo exagerado, que me incomodasse. Nem mesmo o cheiro, nunca incomodou", explica. >
Deise faz parte do contingente de mulheres que fez a transição capilar, mas que, nos últimos anos, decidiu voltar a fazer alisamento. "Fiquei durante uns três anos fazendo a transição. Eu era muito mais nova e queria voltar às minhas origens. Estava no processo de reconhecimento da minha identidade e queria saber como era ficar livre de química", lembra. >
Depois, vieram dois anos com os cachos no cabelo natural. Ela, contudo, se sentia estranha ao se olhar no espelho. "Não me reconhecia. Tentei, ao máximo. Tinha a dificuldade de passar creme todo dia, fazer todo o processo de fitagem e eu não gostava dele em mim. Resolvi alisar de novo e, hoje, eu amo meu cabelo", conta a jovem, que mantém uma rotina de cuidados de cronograma capilar em casa e com idas quinzenais ao salão. >
Ainda assim, a recomendação de muitos profissionais é não fazer química. "Mas as mulheres gostam da mudança. Se estão com profissionais inescrupulosos, que não dão as informações, às vezes elas vão fazendo e aí decidem que querem ser loiras e lisas, digamos. São duas químicas muito agressivas. O ideal é escolher entre uma e outra", diz Adenildes Rêgo.>
Ainda que muito do debate sobre a transição capilar tenha crescido e amadurecido na última década, o retorno ao alisamento por parte de muitas mulheres que tiveram o crespo e o cacheado nos últimos anos, é parte de um processo natural. Essa é a avaliação da antropóloga Naira Gomes, cofundadora e presidenta da Marcha do Empoderamento Crespo. >
Segundo ela, desde o começo, uma das lutas da marcha foi pela agência - ou seja, da capacidade e a legitimidade de agir sobre o próprio corpo a partir das escolhas. "Se eu percebi que o cabelo alisado combina mais com o meu rosto, ótimo. Se eu percebi que um cabelo descolorido, com trança, com dread, orna mais com a identidade que eu quero passar para o mundo, ótimo. O que nós discutimos e continuamos defendendo é que muitas escolhas são feitas a partir de premissas externas a nós e que se impõem a nós, como o machismo, o patriarcado, o racismo e outras operações", explica. >
Em geral, as mulheres e os homens de cabelo crespo e cacheado são iniciados nos alisamentos químicos muito cedo, ainda na infância. Para Naira, portanto, é natural querer agir com menos peso de opressões e imposições. Ao mesmo tempo, ela questiona se o retorno ao alisamento é mesmo uma escolha, uma vez que há danos à saúde. >
"Alguém em sobriedade de consciência vai escolher passar por um processo que vai trazer algum impacto a um órgão tão vital como os rins? Não vai. É sob o peso de um estigma, de uma cobrança que impacta fortemente a vida privada da pessoa com ela mesma e também a vida coletiva, quando as pessoas negras são preferidas aos empregos, preferidas às relações afetivas, preferidas aos imaginários de competência, de beleza, de capacidade, de limpeza", pondera. >
A trancista Juliana dos Santos, que passou pela transição e decidiu voltar a fazer escova progressiva, também faz uma reflexão sobre esse movimento. Ela diz que, antes, por muito tempo, entendia que a sociedade dizia que ela só era bonita com cabelo alisado. >
Com o tempo, ela conta que descobriu que era bonita também com cabelo alisado, com tranças ou com lace (um tipo de peruca com acabamento mais natural). "Quando a gente descobre que combina com tudo, a gente passa a ter outras visões. Quando alisei (de novo), por ser negra, ainda sofria alguns comentários. Era como se o sistema tentasse dizer para a gente estar sempre de acordo. Mas ter me encontrado de todas as formas é uma questão de autoestima". >
Um dos tipos de relaxamento capilar, é mais antigo e pode causar danos permanentes.>
Outra substância usada nos chamados relaxamentos, também só é eliminada com o crescimento dos fios. >
Começou com o uso de formol na composição e, hoje, usa ácidos na formulação. >
Não são definitivos, mas reduzem frizz e volume>