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A era da testosterona

Caminho por essa terra devastada, despida de sensatez e atulhada de opiniões rasas e sem matizes

  • Foto do(a) author(a) Paulo Sales
  • Paulo Sales

Publicado em 24 de agosto de 2025 às 05:00

Do meu modesto palácio de papel, contemplo um mundo que apreendo cada vez menos. Tento captar o espírito do tempo e me deparo com som, fúria e incompreensão. Sou que nem um exilado, um monge tibetano apartado do cotidiano alheio, vivendo numa bolha com as poucas pessoas que gosto. Essa bolha é minha comunidade, meu gueto, meu habitat. Sou um franco-atirador desarmado observando do alto de um campanário as trincheiras lá embaixo.

Ouço músicas que quase ninguém escuta, como a versão de Dexter Gordon para Willow Weep for Me que sai agora dos alto-falantes. Leio livros de autores que andam meio fora de moda, como as deliciosas memórias de Mario Vargas Llosa reunidas em Peixe na Água, velho volume amarelado comprado num sebo virtual. Aqui não entram as canções mais tocadas do momento, muito menos aqueles livros repletos de narrativas engajadas, maniqueístas e didáticas, tão em voga na literatura contemporânea.

O cenário que Umberto Eco antecipou há alguns anos se concretizou de vez, transformando opiniões irrelevantes em verdades absolutas. Mensagens recebidas no celular são a principal fonte de informação para milhões de pessoas, não importando se são verdadeiras. Vigaristas se passam por líderes religiosos disseminando mentiras, arregimentando multidões de incautos e os roubando sem o menor escrúpulo. Palavras como lucidez, bom senso e prudência tornaram-se obsoletas.

Nas redes sociais, comunicadores (ou “influencers”) que se expressam num idioma quase desconhecido escalam com espantosa desenvoltura a montanha que separa o anonimato da notoriedade. Pautam temas, exercem enorme influência no comportamento da sociedade e interferem, para o bem e para o mal, em questões cruciais. Seus nomes – alguns bem esdrúxulos – aparecem nos portais de notícias sem que eu faça a menor ideia de quem são ou do que vivem.

No aspecto estético, a beleza sem artifícios cede lugar a um padrão plastificado. Homens e mulheres cultivam músculos em demasia e lançam mão de harmonizações que uniformizam o que é diferente, borrando as fronteiras do bom gosto e da singularidade. A era da testosterona se consolida, materializada em motocicletas que rodam com escapamento sem silenciador e picapes enormes que invadem a contramão, pilotadas por clones quase idênticos entre si no jeito de se mostrar ao mundo: boçais, truculentos, obtusos.

É curioso como esses tipos, em tese quase indestrutíveis, costumam extravasar seu ódio indefinido contra alvos vulneráveis. No Rio Grande do Norte, um brutamontes forjado em supinos, suplementos e anabolizantes desferiu 61 socos contra uma mulher num elevador, onde a possibilidade de defesa fica ainda mais prejudicada. Em Minas Gerais, um outro discutiu no trânsito com trabalhadores de limpeza e atirou num deles, como quem se livra de uma dor de cabeça tomando uma aspirina. Vejo sua imagem na tevê: expressão imbecilizada, bovina, por trás dos quilos de músculos, sem deixar escorrer uma gota de remorso.

Seria a brutalidade contra os mais fracos um sintoma de nossa época? Nesse tempo disruptivo, que despreza o conhecimento adquirido durante séculos e liquefaz os alicerces da civilização, despontam como líderes mundiais figuras com forte pendor para a intimidação e o menosprezo pela vida de gente inocente. Um tempo oco, difuso, amorfo, com personagens que parecem saídos das telas de Francis Bacon. A derrocada moral é avassaladora.

Caminho por essa terra devastada, despida de sensatez e atulhada de opiniões rasas, derivativas e sem matizes, me sentindo um pouco como aquele xerife de semblante exausto tão bem personificado por Tommy Lee Jones em Onde os Fracos Não Têm Vez, dos irmãos Coen. Ele não consegue reprimir a perplexidade frente ao embrutecimento coletivo e percebe que em breve terá que dar lugar a pessoas com outra mentalidade, que provavelmente vão se adequar melhor aos novos tempos. Os sentimentos que prezo, a cultura que adquiri, meus prazeres epicuristas, tudo parece supérfluo e desprezível. Será que é assim que a gente vai se despedindo do mundo?