A vida dos outros

Cineasta talentoso, Petzold constrói em Afire uma parábola moral sobre essa incapacidade humana de compreender o outro

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  • Paulo Sales

Publicado em 15 de janeiro de 2024 às 05:00

Tendemos a enxergar o outro apenas como uma projeção de nós mesmos. Sua existência chapada, monolítica e sem matizes nada significa quando despida da nossa atenção. Seres narcísicos, envoltos na redoma do egocentrismo, ignoramos o que circunda a nossa órbita. Sentimentos, gestos, olhares e apelos são enigmas que não nos interessam, tão envolvidos que estamos com a magnitude dos nossos eus.

Leon, o jovem escritor com bloqueio criativo de Afire, o mais recente filme do alemão Christian Petzold, é um homem agrilhoado a si mesmo. Tudo que é externo lhe soa patético, risível ou irritante. Refém de um solipsismo extremado, ele não descortina as inúmeras possibilidades de viver novas experiências ao passar uns dias na casa de praia do amigo Felix e lá encontrar Nadja, moça que guarda certos mistérios que ele não parece minimamente interessado em desvendar. Leon é um sujeito medíocre, opaco, esnobe e refratário ao novo.

Mas há nele muito de nós mesmos – ou ao menos da maioria de nós. A capacidade de exercitar a alteridade é coisa rara, quase uma anomalia numa sociedade que se encolhe como um tatu em torno do próprio umbigo. Enquanto seu novo livro não engrena e ele passa seus dias à toa, ao contrário dos demais que frequentam a casa e a praia, Leon revela toda a sua inapetência para a vida em comum. Algo que lhe custará caro no aspecto emocional mais à frente.

O cenário até então solar e idílico no qual os personagens transitam torna-se sombrio com a chegada de um incêndio florestal, fantasma distante que por fim se materializa em todo seu tenebroso esplendor. Ao se deparar com um pequeno javali morrendo calcinado à sua frente na floresta, Leon se dá conta, tardiamente, de que não é o centro do mundo, um Luís XIV temporão. Isso permite que retome o fio perdido do próprio talento e possa prosseguir.

Faltava-lhe, como escritor, a necessária vivência de mundo, estender o olhar ao outro, com todas as suas idiossincrasias e peculiaridades, e não apenas recolher- se a si mesmo. Adquirir aquela carapaça resistente que só os que padecem com o sofrimento alheio possuem. Hemingway, de quem estou lendo os primeiros (e ótimos) artigos escritos para um pequeno jornal de Toronto, tornou-se grande pela capacidade de olhar ao redor com argúcia, curiosidade e sobretudo compaixão. E apequenou-se justamente quando se tornou personagem de si mesmo, fanfarrão e bravateiro.

Cineasta talentoso, autor de obras instigantes como Phoenix e Em Trânsito, Petzold constrói em Afire uma parábola moral sobre essa incapacidade humana de compreender o outro e se projetar no lugar dele. Vislumbrar o que está por trás de um sorriso ou de uma lágrima, entender que o mais simples dos seres é muito mais complexo do que supomos em nossa arrogância. Estamos falando aqui de empatia, termo já tão banalizado nestes tempos de muito barulho por nada.

Tentar compreender tudo aquilo que se mantém alheio a nossa realidade deve ser um exercício constante. Buscar saber por que uns demonstram predileção por amar cães e outros evitam a praia com sol a pino. Admitir que existem pessoas que cultuam histórias em quadrinhos, desejam e se apaixonam por pessoas do mesmo sexo ou não dispensam um baseado no fim de tarde. Ou até mesmo buscar no fundo da alma algum argumento que justifique o fato de aquela pessoa que tanto gostamos admirar um político que tanto desprezamos.

É assim que, parafraseando Scott Fitzgerald, fugimos da caverna onde se escondem as nossas convicções e as contemplamos do alto das colinas. É necessário o espaço arejado para que possamos nos despir dos preconceitos e escutar o que dizem os silêncios. Perceber as muitas nuances entre gritos e sussurros, entre insanidade e sensatez. De perto ninguém é normal, já disse Caetano. Mas é preciso estar perto para se chegar a essa conclusão.

Penso em um amigo muito querido dos meus tempos em São Paulo, que optou por viver fora do raio da nossa presença – minha e de amigos comuns que nutrem por ele genuíno afeto. Especulamos sem sucesso as motivações que o levaram ao exílio da nossa convivência e a ignorar qualquer tentativa de aproximação. Um trauma, uma conversão religiosa radical ou simplesmente enfado diante dos cretinos que nos tornamos? Nenhuma das alternativas faz sentido, concluímos. Mas será que investigamos direito? O seu silêncio não seria um pedido de socorro? Ou um desesperado ato de libertação? Não fazemos a menor ideia.