Annie Ernaux e a sombra do passado

A autora francesa maneja sentimentos devastadores, encerrados em gavetas trancadas por um silêncio de décadas

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  • Paulo Sales

Publicado em 2 de outubro de 2023 às 05:00

Alguns livros produzem tamanha identificação com o leitor que acreditamos ser aquela a nossa história. É quando as páginas abertas se convertem em um espelho no qual nos vemos refletidos, como se nossos segredos mais íntimos tivessem sido devassados. A tragédia concebida pelo autor encontra eco em nossa tragédia pessoal, feito uma mesma peça encenada em locais distintos. Cada montagem tem suas características próprias, com diferentes atores e diferentes palcos, mas mantém a essência do texto original – ou do que foi vivido.

Ler A Outra Filha, de Annie Ernaux, provocou em mim essa sensação. Naquelas 60 páginas, que li em algumas horas de puro delírio e assombro, eu me comovi profundamente e revisitei o meu próprio passado, que repercute ainda hoje em quem sou. Vi a mim mesmo refletido naqueles pensamentos, naquela angústia. Eu poderia ter escrito esse livro. Não com as mesmas palavras ou os mesmos personagens, muito menos com o mesmo talento. Mas certamente com o mesmo sentimento de perda de algo que nunca possuí. Tenho pudor de me aprofundar nesse assunto. Um pudor que Ernaux não teve.

A autora francesa maneja sentimentos devastadores, encerrados em gavetas trancadas por um silêncio de décadas. Ela abre essas gavetas e revira o conteúdo como quem cava fundo um ferimento, num exercício por vezes cruel de dor e desnudamento. Memorialístico, como de resto é toda a sua obra, A Outra Filha refaz o caminho de regresso até um fato crucial na história de sua família: a existência de uma irmã que nasceu e morreu antes dela, vítima de difteria. Ernaux só soube dessa irmã aos 10 anos, ouvindo por acaso uma conversa da mãe com outra mulher. Aquilo mexeu com seus alicerces de filha única de pais pobres e batalhadores.

Annie reflete sobre o peso de ter sido a filha sobrevivente, enquanto a irmã pesou brevemente sobre a Terra. “Você precisou morrer aos seis anos para que eu viesse ao mundo e fosse salva”. É uma espécie de exorcismo, de acerto de contas. Mas é também uma tentativa de eliminar a sombra e o peso do passado – embora saibamos que ele estará sempre ali, espectro pálido de quem fomos. Não é tarefa fácil “lutar contra a longa vida dos mortos”.

A partir do momento em que toma consciência dessa irmã, a vida de Annie se une umbilicalmente a ela. Como se uma espelhasse a outra em imagens iguais, embora assimétricas. “Quando eu era pequena, achava – devem ter me dito – que aquele bebê era eu. Não sou eu, é você”. A confusão se estabelece em outro trecho: “Não tenho outra lembrança sua além daquela cena imaginada no verão dos meus dez anos, uma cena na qual se confundem a que morreu e a que foi salva.”

O jogo de duplos em alguns momentos cede lugar à negação: “Mas você não é minha irmã, você nunca foi minha irmã. Nós não brincamos, não comemos, não dormimos juntas. Eu nunca encostei em você, nunca te abracei. Não sei a cor dos seus olhos. Nunca te vi. Você não tem corpo nem voz, é apenas uma imagem chapada em algumas fotos em preto e branco. Não tenho lembranças suas. Quando nasci, você já tinha morrido havia dois anos e meio.”

Em dado momento, Annie se dá conta de que seu nascimento é fruto de um desespero anterior a ela. Uma dor silenciosa, jamais verbalizada em casa pelo pai ou pela mãe. Dor que não ousava dizer o nome, à qual ela pertencia sem pertencer. Pietá ensimesmada, a mãe de Annie prosseguiu junto com o marido sem lamuriar-se, permitindo que a filha mais nova crescesse, estudasse e se tornasse adulta. Mas lhe faltava uma parte.

Na canção Pedaço de Mim, talvez a mais dolorosa peça artística já concebida sobre a perda de um filho sob o ponto de vista da mãe, Chico Buarque escreveu: “A saudade é o revés de um parto/A saudade é arrumar o quarto/Do filho que já morreu”. Essa saudade, revés do parto, permaneceu intacta, tatuada em algum lugar da alma daquela jovem mulher francesa, que envelheceu sem que as formas tatuadas esmaecessem.

Debruçar-se sobre sentimentos tão duros exige coragem e desprendimento. Ao dar forma, já no terço final da sua vida, a essa história trágica, Annie Ernaux não apenas evita que seja esquecida. Ela também honra seus pais e sua irmã e, através deles, dá voz a outras histórias igualmente trágicas que não puderam ser contadas, seja por vergonha ou timidez. Com isso, resgata do oblívio todas as heroínas e heróis anônimos que, como seus pais, deram continuidade às suas vidas e criaram seus filhos sobreviventes abafando o grito no peito.