Confissões de tempos quase esquecidos

@paulosales1970

  • Foto do(a) author(a) Paulo Sales
  • Paulo Sales

Publicado em 30 de março de 2024 às 05:00

Cá estou eu, jazz no som e taça de vinho na mão, trabalhando nessa coisa vã e cansativa que é fazer crônica, como já disse o velho Braga. É um início de noite quente, como costumam ser os estertores do verão nesta cidade, o horizonte brumoso já denunciando a chegada do outono. Poderia estar agora frequentando os salões da alta sociedade lisboeta, como tenho feito todas as noites ao abrir as páginas amarronzadas de uma antiga edição de Os Maias e me deliciar com a ironia e o humor incisivo de Eça. Mas cá estou, olhos na tela e corpo recostado na cadeira, tentando extrair algo que preste desta mente sem inspiração.

Comentava mais cedo com minha mãe que neste fim de semana completam-se 60 anos do início da nossa desditosa aventura fardada. Em 31 de março de 1964, minha mãe era uma jovem mulher de 22 anos, grávida do seu primeiro filho, meu irmão mais velho. Morando em Salvador, meus pais começavam sua vida em comum. E, como a maciça maioria dos brasileiros, eles pouco sabiam do que acontecia em Juiz de Fora, onde as tropas lideradas pelo general Olympio Mourão Filho escreviam as primeiras linhas de uma página infeliz da nossa história. Sepultava-se de vez, naquele momento, qualquer possibilidade de nos tornarmos o país do futuro de que falou Stefan Zweig.

Dias depois de consumado o golpe, meus pais abrigaram em casa um tio nosso, ligado ao movimento de resistência. A polícia estava à sua caça, mas ele acabou conseguindo fugir e se exilar na Itália, se não estou enganado. Um período tenso, segundo minha mãe. Mas esse foi o único episódio que a minha família vivenciou envolvendo diretamente a Ditadura. De resto, sofremos com a disparada da inflação, do custo de vida e da desigualdade social e com a favelização das cidades e a violência urbana. Por sorte não respingaram em nós as feridas abertas pelo terrorismo de Estado, ainda não devidamente julgadas e muito menos cicatrizadas.

Quando eu nasci, no verão de chumbo de 1970, o cenário trágico já estava sedimentado. Mas nos meus primeiros anos tudo se resumia a neblina e sombras. Cresci numa redoma de afeto e proteção que me poupou dos dissabores de um país em derrocada. Surgindo na tevê como espectros borrados em preto e branco, Geisel, Carter e Brejnev eram os líderes políticos dessa minha primeira década. Brincava com bonequinhos de plástico, lia gibis do Tio Patinhas, assistia a filmes e seriados, frequentava a escola e ia à praia nos finais de semana com meus pais e irmãos. Uma vida pacata em um bairro pacato, que me era em parte vedado.

As canções de Chico, ouvidas por meu irmão num antigo toca-discos, me atingiam feito dardos, embora eu não compreendesse o seu significado. O que queriam dizer versos como “A saudade é o revés de um parto”? Que dor era aquela, latente em algum desvão de mim e que me corroía? Com menos de 10 anos, parecia carregar um estorvo imaginário nas costas. Era um pouco, guardadas obviamente as proporções, como o pequeno Sartre de As Palavras: “Quanto a mim, eu era o começo, o meio e o fim juntados num menino muito novo e já velho.”

O mundo sempre me pareceu maior do que eu poderia abarcar, mas ao mesmo tempo sua vastidão me seduzia precocemente. Os livros, as mulheres, as cidades, os planetas… havia algo nisso tudo que fascinava aquele garoto tímido e gordinho que sonhava em desenhar como Leonardo da Vinci e mal conhecia a sua vizinhança. Como disse, estava envolvido numa redoma. E não foi fácil estilhaçá-la para enfrentar a vida real com seus prazeres, aflições e infortúnios.

Esse garoto é o homem de 54 anos que neste momento escuta embevecido Lee Morgan tocando All the Way, enquanto dá cabo da terceira taça de um chardonnay uruguaio. Ou ao menos é uma parte desse homem, talvez a mais essencial, o âmago que ele carregará rumo à velhice e ao túmulo. Um homem ainda tímido, dotado de uma sensibilidade que aflora quando não deve e que ainda tenta compreender e abarcar a vastidão do mundo. Que deplora a brutalidade cotidiana e as buzinas no trânsito. Que se horroriza com animais abandonados e com os milhões de animais assassinados todos os dias para que desperdicemos sua carne em restaurantes de rodízio.

Cá estou eu, ainda sem assunto e sem motivação, desaguando essas confissões banais como Pollock respingava tinta em seus quadros: sem saber direito aonde queria chegar, mas mesmo assim dando forma a seus emaranhados coloridos, movido por uma compulsão imperiosa de se expressar. Sou um Pollock simplório, com emoções simplórias e um olhar simplório sobre o que me cerca, respingando reminiscências numa tela de computador. Não posso querer ser nada, como Pessoa, mas também tenho em mim todos os sonhos do mundo. Assim prossigo. E assim encerro mais uma crônica vã e cansativa. Santé!