Lá onde os esquecidos habitam

É muito fácil deplorar tragédias alheias com uma taça de vinho na mão e o sossego de quem vive seguro no seu canto

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  • Paulo Sales

Publicado em 4 de março de 2024 às 05:00

Talvez o mundo esteja precisando encontrar uma rachadura por onde entre a luz, como na canção de Leonard Cohen. Mas o que se vê é um mundo rachado, em parte estilhaçado, por onde só passa o breu. O conhecimento acumulado escorre por frestas enormes e com ele a sensatez e o aprendizado do que fizemos de errado. Ressuscitam cadáveres que não foram devidamente sepultados. Floresce uma nova modalidade de estupidez. Prosperam a crueldade e o medo e a imagem de crianças com membros amputados sem anestesia.

“Tente de novo. Falhe de novo. Falhe melhor”. Beckett revisitado por cretinos. Nos especializamos em falhar. O erro é uma sina que não ousamos desafiar. Não sei o que somos, seres fadados ao malogro, compondo sinfonias e afrescos e romances que servem de boias para não afundarmos de vez no mar da abjeção. Prosseguimos indiferentes como personagens do filme Zona de Interesse, alheios ao som ao redor, discorrendo banalidades enquanto os fornos ardem na vizinhança e os gritos e os tiros e o desespero são ignorados porque desimportantes.

Fumaça rubra, cinzas incômodas, ossos no rio. O horror, o horror que se repete ao infinito. “Ouvi o som do trovão e seu estrondo era um aviso”, “Ouvi dez mil sussurrando e ninguém estava ouvindo”, “Ouvi uma pessoa morrer de fome, ouvi muitas rindo”. Dylan tinha apenas 22 anos quando escreveu esses versos e ele cria que seria o fim de tudo aquilo que conhecemos e a que nos agarramos como náufragos: “É uma canção de desespero. Cada verso dela é o começo de uma nova canção. Mas quando a escrevi, pensei que não ia viver tempo suficiente para fazer essas canções e portanto pus nessa tudo que pude”.

Néscios são cultuados como mitos aqui e lá fora. Anseiam reeditar o pior do nosso passado: milhões arrastados para uma carnificina estúpida, levados a reboque pelo delírio de um louco. Louco? É fácil e cômodo atribuir ao Mal o epíteto da loucura. Que estranho fascínio permite que esse Mal viceje em plenitude? Milosevic, Idi Amin, Pinochet, Stálin, Pol Pot, Mussolini, Trujillo, Hitler. Ignorei os que vieram antes para mostrar do que o século 20 foi capaz, e ainda assim deixando outros genocidas de lado. Enquanto isso, o século 21 já começa a esboçar seus candidatos. Fico me perguntando se vale a pena entrar para a história a qualquer custo, nem que seja como assassino.

Dylan continua a cantar bem alto nesta minha fortaleza de papel e concreto, imune a bombardeios e disparos de metralhadora. Ele me diz que uma chuva forte vai cair e me pergunto quando desvendarei tudo que essa canção abarca. A sabedoria de séculos me rodeia enquanto escrevo, recebendo doses diárias de poeira e tédio: Dostoiévski, Shakespeare, Cervantes, Kafka, Hemingway, Faulkner, Márquez, Llosa, Borges, Rosa, Roth. Para que servem? Para que serve esta crônica? Para que serve indignar-se?

Escrevo sob o impacto do massacre transmitido via satélite de Gaza para o mundo. O desespero dos famintos e a covardia dos assassinos e a história sendo repetida com sinais trocados. A insignificância de certas vidas me comove. Tornam-se estatísticas quase instantaneamente, seus nomes sumindo entre escombros e sepulturas coletivas e hospitais bombardeados. “Oh, meu nome é nada, minha idade menos ainda”, canta Dylan. E prossegue: “Não se contam os mortos quando Deus está do seu lado”.

Qual o lado de Deus, quem são os infiéis? São os hereges que ardem agora? Qual é o povo escolhido: o que mata ou o que morre? Vou até a janela contemplar a noite e me deparo com a lua minguante nascendo por cima dos prédios, enevoada e amarela e refratária a todas essas indagações inúteis. Um maciço de pedra e pó iluminado pelo sol, que sempre nos enleva quando a vemos despontar no horizonte. Um dia, milênios e milênios à frente, alguém de algum planeta distante saberá por que nos matamos tanto? O que fizemos com a dádiva que é existirmos? Por que fracassamos até esse ponto de não retorno?

Dylan me põe no meu devido lugar: “Mas você que faz filosofia com desgraça e critica todos os medos, tire esse pano do seu rosto, agora não é hora para suas lágrimas”. Ele está certíssimo. É muito fácil deplorar tragédias alheias com uma taça de vinho na mão e o sossego de quem vive seguro no seu canto. Quanto cabotinismo. Eu vou dormir bem esta noite, a cabeça num travesseiro confortável, e logo a desgraça com a qual faço filosofia barata aqui deixará de fazer parte do meu rol de inquietações. E enquanto sonho com cavalos voadores ou praias desertas, a vida continuará sangrando lá fora, lá em Gaza, lá onde os esquecidos habitam.