Acesse sua conta
Ainda não é assinante?
Ao continuar, você concorda com a nossa Política de Privacidade
ou
Entre com o Google
Alterar senha
Preencha os campos abaixo, e clique em "Confirma alteração" para confirmar a mudança.
Recuperar senha
Preencha o campo abaixo com seu email.

Já tem uma conta? Entre
Alterar senha
Preencha os campos abaixo, e clique em "Confirma alteração" para confirmar a mudança.
Dados não encontrados!
Você ainda não é nosso assinante!
Mas é facil resolver isso, clique abaixo e veja como fazer parte da comunidade Correio *
ASSINE

O Agente Secreto e um país fraturado

É quase uma imersão sensorial entre ruídos e acordes, texturas e odores

  • Foto do(a) author(a) Paulo Sales
  • Paulo Sales

Publicado em 16 de novembro de 2025 às 05:00

É possível traçar uma ponte, ainda que precária, entre o recém-lançado O Agente Secreto, de Kleber Mendonça Filho, e Bye Bye Brasil (1979), de Cacá Diegues. Cada um a seu modo, ambos esmiúçam o país a fundo. Mostram suas contradições e dissonâncias, suas riquezas e misérias, sua grandeza inerte de nação eternamente em busca do futuro prometido por Stefan Zweig, sem perceber que se comporta feito o burro correndo atrás da cenoura à sua frente.

Diegues, porém, estava ali no calor da hora, captando com sua câmera o país que nascia naquele momento: o êxodo rural, o interior profundo sendo desbravado e devastado, as antenas de tevê, espinhas de peixe onipresentes que expulsavam o Brasil arcaico da Caravana Rolidei. Já Mendonça precisou voltar quase 50 anos para mostrar esse mesmo Brasil, só que direcionando o foco para uma metrópole nordestina já urbanizada e com alta densidade populacional, numa reconstituição que vai muito além dos Fuscas coloridos nas ruas: ela capta o espírito do tempo e nos faz imergir dentro dele.

O Agente Secreto por Reprodução

É que nem uma autópsia: dissecam-se as vísceras de um poder público sequestrado por interesses privados, a truculência sem freios das forças de segurança, os que compram e os que se vendem (ou não), os que calam e os que somem. Tudo isso costurado na tensão flutuante de um Recife belo e brutal, no qual o sexo é a única via para o desafogo, válvula de escape que mitiga a asfixia coletiva.

O Agente Secreto expõe o Brasil fraturado de 1977, vivendo os estertores e as consequências do período mais atroz da ditadura militar. Esse país enfermo e violento é revivido sem edulcoração, mas também com afeição. Há uma nordestinidade terna e genuína, um jeito de ser tão próprio de um povo, com suas singularidades, seu humor por vezes enviesado, sua predileção pela sacanagem e pela esbórnia. É quase uma imersão sensorial entre ruídos e acordes, texturas e odores.

Somos arrastados junto com o cientista Marcelo (Wagner Moura) em seu retorno à Ítaca nordestina, convivendo com a degradação moral em estado puro: policiais achacadores, delegados que fazem bico em grupos de extermínio, matadores de aluguel, empresários que usurpam o poder em estatais e toda sorte de punguistas sociais. Mas ele também recebe afeto e abrigo de quem está do outro lado do muro. Essa divisão poderia ser classificada como maniqueísta – e talvez seja. Mas poucas vezes se viu no Brasil uma cisão tão abissal entre decência e abjeção quanto naquele período.

Marcelo vem buscar seu filho pequeno para fugir com ele do país, após perder a esposa. Está jurado de morte e aos poucos compreendemos os motivos que o levaram até ali. Mas não é apenas o enredo que importa, e sim a forma como Mendonça edifica a sua engrenagem feita de retalhos culturais, desvios narrativos que potencializam a trama e uma edição de som inventiva, algo que já se prenunciava em O Som ao Redor. É uma realização cinematográfica prodigiosa.

Mas O Agente Secreto é maior do que a soma de suas qualidades estéticas. Em seu filme mais maduro, Kleber Mendonça Filho faz, acima de tudo, uma defesa da memória em um país que insiste em desprezá-la. No caso, a tentativa de resgatar do esquecimento os desconhecidos que pagaram caro por suas convicções e atitudes. Como Terrence Malick em Uma Vida Oculta, Mendonça fala dessas existências anônimas que são arrancadas do seu mundo e tragadas pela Grande História. Mas que, quase sempre sem qualquer reconhecimento, fazem a civilização avançar.

É mais ou menos o que escreveu a autora britânica George Eliot, lembrada pelo próprio Malick no encerramento do seu filme: “O bem crescente do mundo depende em parte de atos não históricos. Se as coisas não vão tão mal para nós como poderiam ter ido, metade devemos àqueles que viveram fielmente uma vida anônima e repousam em túmulos que ninguém visita.”

No salto temporal empreendido no terço final de O Agente Secreto, vemos o filho de Marcelo já adulto sendo confrontado com o passado e disposto a mantê-lo sepultado. Aquele não é o seu mundo e pouco lhe interessa suas origens. Saber quem foi seu pai representaria um estorvo emocional que ele provavelmente prefere ignorar. Não deixa de ser uma analogia com o país que optou de forma deliberada por não julgar e condenar seus assassinos.