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O fardo das vidas desinteressantes

Acompanhei, ao longo das últimas décadas, pessoas conhecidas abandonarem a própria trajetória em função de suas crias, como se abraçassem uma nova crença

  • Foto do(a) author(a) Paulo Sales
  • Paulo Sales

Publicado em 20 de setembro de 2025 às 05:00

“O maior favor que você pode fazer a um filho é ter uma vida própria interessante, para que ele não precise carregar o fardo de ser a sua única razão de viver”. Essa reflexão, do escritor e psicanalista Contardo Calligaris, está no livro Cartas e um Jovem Terapeuta. Morto há 4 anos, Calligaris é dessas pessoas que deixam uma lacuna no mundo quando o abandonam.

Pesquei a frase do post de uma ex-colega de redação, que a usou como ponto de partida para discorrer sobre a necessidade do autocuidado emocional, já que o ninho em algum momento fica vazio. Seu filho mais novo mora em outro estado e o mais velho é independente. Comentei no post: “Quem vive em função dos filhos abdica das próprias experiências e descobertas. Torna-se oco, sem perspectivas”. Ela respondeu: “Uma cilada focar nos outros, seja quem for. Para os filhos, então, vira um peso enorme”.

Acompanhei, ao longo das últimas décadas, pessoas conhecidas abandonarem a própria trajetória em função de suas crias, como se abraçassem uma nova crença. Em muitos casos essa guinada representou uma renúncia absoluta à evolução profissional e pessoal. Quando travo contato com algumas delas, percebo que a conversa se tornou enfadonha e os interesses ficaram mais prosaicos. Gente que um dia foi curiosa, divertida, impetuosa vai ficando careta, temerosa, desinteressante.

Não sei a que ponto é um processo voluntário, muito menos condeno quem o vivencia. Até porque desconheço a medida do amor ou se o amor deve ser desmedido. Ou mesmo se o excesso de zelo transforma o amor em obsessão. Acredito ser um pai amoroso, dedicado, presente. Mas minha filha sempre soube que havia momentos que eram meus e só meus. Sou um homem de silêncios e sombras, que ao contemplar o vazio lá fora na verdade está mirando a própria tempestade interior.

Recordo um casal conhecido que precisou readequar a vida após o nascimento do filho, e como a mulher abraçou compulsivamente os afazeres da criação, minando o casamento e deixando de lado a própria história. Anos depois, já adolescente, o filho engravidou uma garota e a mãe tratou de repetir o mesmo processo, agora com o neto. O marido, que havia renunciado aos seus prazeres e predileções durante todos aqueles anos, não aceitou e foi cuidar da vida – dessa vez com outra mulher.

É evidente que a chegada de um filho implica obrigações e renúncias. O dinheiro destinado à diversão se esvai, o narcisismo se dilui, preocupações com educação e saúde do rebento sequestram horas antes dedicadas a deliciosas frivolidades. Relações outrora harmoniosas se deterioram e a amargura toma conta quando a imaturidade ou a incapacidade de convivência tornam-se gritantes. Mas são casos e casos, como na frase que abre o Anna Kariênina de Tolstói: famílias felizes e infelizes, cada uma a seu modo.

Com uma filha de 25 anos já criada, não tenho do que reclamar. O casamento foi mantido sem maiores percalços e continuo me dedicando às minhas pequenas epifanias, acompanhado ou não da minha família: ir à praia, adquirir conhecimento, cultivar velhas e novas amizades, desbravar prazeres boêmios e sempre que possível me perder em cidades desconhecidas. Ou até escrever crônicas desimportantes ao som de Thelonious Monk, que nem faço agora. É o meu modo de levar uma vida interessante e espero com isso não me tornar um fardo para minha filha.

Há, porém, o extremo oposto: aqueles que largam mão de tudo sem remorso e sem olhar para trás. Foi o que fez um velho tio, já morto, que abandonou a mulher e os cinco filhos e nunca mais os viu nem os ajudou financeiramente. Foi viver em outras cidades, com outra mulher e outros filhos, para os quais foi um bom pai. Era como se passasse um pano no passado, borrando a imagem de quem viu nascer e seguisse em frente, feito alguém que assume uma nova identidade.

O pintor Paul Gauguin fez o mesmo: abandonou a mulher e os cinco filhos na França para desbundar e morrer nos mares do sul, onde se amasiava com nativas de 14 anos e consumia doses cavalares de álcool e ópio, enquanto pintava os quadros que o tornariam eterno. Gauguin sofreu horrores com a morte de sua filha Aline, aos 20 anos. Mas já estava num caminho sem volta, no qual não cabia a existência de um filho (quanto mais cinco). Talvez o abandono fosse condição imprescindível para ser o artista que foi. Do alto de minha mediocridade, eu optaria pelo anonimato.