Pequeno tributo a grandes mestres

Se tem algo que prezo é a clareza. Soar obscuro, hermético ou incompreensível é a meu ver um deplorável exercício de pedantismo

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  • Paulo Sales

Publicado em 29 de janeiro de 2024 às 05:00

Recentemente, uma leitora escreveu um comentário bem-humorado a respeito de um texto meu, numa postagem do Correio no Instagram: “No começo eu não entendi, no final parecia que eu tava no começo”. Eu me acabei de rir. Ela se referia à crônica Altos voos e quedas livres, publicada no final do ano passado. Não é um texto linear, mas sim uma sucessão de digressões e reminiscências aparentemente aleatórias. Elas vão se sobrepondo e compondo um painel do que eu realmente queria escrever: que a vida é feita de experiências arrebatadoras e de pancadas violentas.

Mas é provável que a leitora esteja certa. Se tem algo que prezo é a clareza. Soar obscuro, hermético ou incompreensível é a meu ver um deplorável exercício de pedantismo. Se caí nessa armadilha, peço desculpas. Cultivo o mau hábito de desviar da rota principal e num fluxo de consciência enveredar por sendas inauditas. Também não costumo abordar assuntos frívolos, desinteressantes ou que geram cliques e polêmicas vazias. Este espaço é como uma extensão da minha biblioteca ou da minha varanda, onde ao sabor da conversa costumo discorrer com pessoas queridas sobre temas que me são caros. De comentários sobre livros, filmes e canções até recordações do passado e prosaicos questionamentos sobre a existência.

Lembro agora de uma entrevista do poeta João Cabral de Melo Neto, na qual ele reconhece que não facilita as coisas para o leitor. “Eu vi que era possível escrever uma poesia com textura áspera, que fosse difícil de ser lida em voz alta. Uma poesia que não embalasse o leitor. Uma poesia em que o sujeito, ao passar de uma palavra a outra, tivesse que pensar. Uma poesia em que eu pusesse a cada palavra um obstáculo ao leitor”. João Cabral se saiu bem dessa empreitada: sua poesia é mesmo abrasiva, pedregosa – e é nisso que reside o seu encanto.

Não é fácil encontrar o próprio estilo e soar autêntico e verdadeiro. Jack London descobriu o seu a partir das próprias experiências: pirata de ostras, marujo em mares bravios, garimpeiro na corrida do ouro ou simplesmente embarcando clandestino em vagões de trem. Sua prosa caudalosa e viril versa sobre a insignificância do ser humano diante da magnitude da natureza, o valor das amizades forjadas em sofrimento, a força bruta como único meio de sobrevivência.

Os contos de London têm me acompanhado nos últimos dias, desde que peguei na estante um antigo volume da editora Cultrix, adquirido há mais de três décadas não lembro mais onde. Curioso é que esse exemplar só deixou a estante por conta do comentário de um amigo numa rede social, louvando o conto O Mexicano. É mesmo um assombro, das mais vívidas experiências que uma narrativa curta pode proporcionar. Imediatamente após a leitura, passei aos demais textos.

Gosto de pensar na elegância e na discrição quase aristocráticas com que os livros esperam a sua vez. Passam anos sucessivos ali espremidos sem um único gemido ou sussurro, aguardando o momento em que serão – ou não – devassados pela leitura. Gosto de pensar, também, nos caminhos tortuosos que fazem um livro ir parar nas nossas mãos.

No último domingo, trouxe para casa um velho exemplar de O Emblema Rubro da Coragem, de Stephen Crane. Estava exposto no calçadão da orla do Rio Vermelho e o comprei mais no intuito de dar uma força ao livreiro. Seu nome é Aurélio, bom sujeito que aprecia literatura e vende alguns achados por preços módicos. Já havia comprado em suas mãos um livro de Ruy Castro, que até virou tema de uma crônica há alguns meses, por conta da dedicatória que havia nele.

Aurélio me faz lembrar de Pedro, outro vendedor de livros das ruas, que conheci em São Paulo na minha juventude, quando morei lá. Foi Pedro quem conseguiu para mim os exemplares então raríssimos de Os Subterrâneos, de Jack Kerouac, e Factótum, de Charles Bukowski (deste último ele obteve dois: o outro foi para um amigo que também era louco pelo autor). Li esses livros avidamente, vibrando em silêncio a cada frase, cada capítulo vencido. Hoje são facilmente encontrados até em postos de combustível, em edições de bolso novinhas.

O tempo passou e Kerouac e Bukowski são hoje um retrato na parede – literalmente: pôsteres de ambos integram, num canto da minha biblioteca, a galeria de ídolos literários que cultivei ao longo das décadas (os outros são Hemingway, Fitzgerald, García Márquez e Philip Roth). Talvez a palavra “ídolo” não mais defina o que significam para mim. Seria mais uma espécie de afeto e gratidão. Cheguei a pensar em trocar a foto de um deles pela de Jorge Luis Borges, que atualmente ocupa um latifúndio no lado esquerdo do meu peito. Mas creio que devemos sempre prestar tributo a quem nos fez bem no passado.