Acesse sua conta
Ainda não é assinante?
Ao continuar, você concorda com a nossa Política de Privacidade
ou
Entre com o Google
Alterar senha
Preencha os campos abaixo, e clique em "Confirma alteração" para confirmar a mudança.
Recuperar senha
Preencha o campo abaixo com seu email.

Já tem uma conta? Entre
Alterar senha
Preencha os campos abaixo, e clique em "Confirma alteração" para confirmar a mudança.
Dados não encontrados!
Você ainda não é nosso assinante!
Mas é facil resolver isso, clique abaixo e veja como fazer parte da comunidade Correio *
ASSINE

“Será em vão que viemos?”

É possível que nos tornemos “amortais”, que nem sugere Yuval Harari em Homo Deus

  • Foto do(a) author(a) Paulo Sales
  • Paulo Sales

Publicado em 11 de outubro de 2025 às 05:00

Entre tantas preciosidades compiladas e dissecadas pelo filósofo e escritor Eduardo Giannetti em seu livro mais recente, Imortalidades, uma me comoveu particularmente. Trata-se de um fragmento dos chamados Cantos de Huexotzinco, concebidos pelo povo náuatle, pertencente ao império Asteca, que antes de ser dizimado pelos espanhóis em 1521 ocupava grande parte do que hoje é o México. Huexotzinco é o nome da região habitada pelos náuatle.

Transmitida de forma oral, a literatura desse povo floresceu no período imediatamente anterior à chegada de Hernán Cortés e sua horda. Vertido para o espanhol em 1582, o trecho reproduzido a seguir faz parte de uma coletânea chamada Cantares Mexicanos: “Esforce-se, meu coração, em querer somente flores de escudo: são as flores do sol. O que fará, meu coração? Será em vão que viemos, em vão que passamos pela Terra? De igual modo me irei, como as flores perecidas. Nada será de minha fama algum dia? Nada restará do meu nome na Terra? Ao menos flores, ao menos cantos!”

É acima de tudo um grito de angústia, uma sublevação entre desesperada e resignada contra o próprio oblívio. Segundo Giannetti, que buscou informações mais precisas sobre a autoria do fragmento de poema, ele por vezes é atribuído a um certo Ayocuan Cuetzpaltzin, mas não há qualquer certeza sobre isso. Giannetti acrescenta: “Se o nome do poeta – como ele aliás temia – perdeu-se nas dobras do tempo, a urgência dos seus versos ignora os séculos”.

Como no clássico poema Ozymandias, de Percy Shelley, nada restou da fama do poeta náuatle, além de um nome possivelmente falso e um breve, delicado e pungente lamento em forma de criação lírica. Seu legado se esboroou. Que os versos tenham alcançado o século 21 é um milagre. Será em vão que viemos? É uma pergunta atemporal, que Giannetti busca responder ao longo das páginas do seu valoroso trabalho. Nossa sede de permanência e nossa absoluta ignorância diante da própria extinção convivem na forma de uma interrogação que devassa milênios.

Fustigado por rajadas de desassossego, após vivenciar o fim súbito e doloroso de uma pessoa muito querida, eu tento mais uma vez compreender o que significa essa breve fenda de luz entre duas eternidades de escuridão de que falou Nabokov. Os que viverão no futuro distante serão poupados desse desassossego? No ano 3025, quando não restar de mim nem “um sulco, um risco, uma sombra”, como no poema de Bandeira, ainda existirá esse desatino a que chamamos morte?

É possível que nos tornemos “amortais”, que nem sugere Yuval Harari em Homo Deus. É possível que nossos órgãos vulneráveis e propensos a cultivar neoplasias sejam substituídos por materiais sintéticos mais resistentes e duráveis. Tecidos, nervos, ossos, músculos, tudo poderá ser trocado e aperfeiçoado. Que seres seremos então: androides com memórias postiças similares aos do filme Blade Runner? Nesse caso, permanecerão a dor do desaparecimento, o cindir da separação, a ruptura do nunca mais ver? Ainda haverá lápides a perder de vista com datas antecedidas por estrelas e cruzes?

As indagações prosseguem: que papel desempenharão Deus, Buda ou Alá nesse mundo de gente quase eterna e quase onipotente? Ou sequer haverá gente, seja para brilhar ou morrer de fome? Máquinas inteligentes, jornadas interplanetárias, novas leis da física? Ou apenas devastação, pó, ruínas e silêncio, que atestarão o fracasso de uma civilização que ousou ser iluminada e ao mesmo tempo engendrou sua derrocada?

Creio que nada mudará em sua essência. Que nunca estaremos totalmente apaziguados com nossa maldição primeva e nosso enigma de existir, ainda que sejam de outra ordem. É provável, portanto, que persista, como um eterno leitmotiv, a angústia vã de alguém que, diante da própria incompreensão e confrontado com a própria finitude, se perguntará: “Será em vão que viemos, em vão que passamos pela Terra?”

*

Aviso aos poucos e fiéis leitores: o cronista entra em férias para um breve e merecido interlúdio e retorna em novembro.