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Paulo Sales
Publicado em 6 de setembro de 2025 às 05:00
Na semana passada eu perdi um grande amigo. Sujeito do bem, generoso, de sorriso largo e bom papo. Foi um companheiro muito presente nos meus anos de formação em São Paulo, quando fiz faculdade de jornalismo, lá se vão 30 anos. Amizade maturada em mesas de bar, onde – envolvidos em conversas edificantes ou meramente frívolas – praticávamos com afinco aquilo que se convencionou chamar de boemia. Ele era o mais querido, simpático e gregário do grupo de comparsas que formamos na época e que ainda hoje cultiva uma sólida relação de afeto, companheirismo e cumplicidade. >
Meu amigo foi tragado por um câncer devastador, que inicialmente surgiu na garganta e depois migrou para o esôfago. Para piorar, ele negligenciou o tratamento quando surgiram os primeiros sintomas. Da descoberta da doença à cerimônia de cremação foram pouco mais de oito meses. Tinha 52 anos. Mas, pensando bem, é provável que já o tivéssemos perdido muito antes disso. É como se o câncer fosse apenas o epílogo sombrio de uma dissipação total iniciada anos antes, quando ele foi aos poucos se afastando de nós e se apartando do mundo. Parecia uma fera em fuga.>
À tristeza soma-se a perplexidade. Nos últimos dias, discorremos muito sobre as razões que o levaram à sua jornada crepuscular, mas as respostas são insuficientes. O que fez com que uma pessoa tão solar fosse se eclipsando progressivamente de maneira tão drástica? Apelamos em diversos momentos por uma reaproximação, mas nas poucas vezes em que travou contato foi esquivo e lacônico. Sofria de uma depressão profunda, que recusou a tratar nos moldes convencionais. Encontrou amparo numa organização de busca espiritual pouco conhecida, a Rosa Cruz. Ali ancorou após anos à deriva.>
Creio que nossa vida mundana ia de encontro ao que ele acreditava nos últimos anos, daí em parte o seu afastamento. Houve ainda certa frustração profissional e sobretudo o fim do casamento com a mulher que amava, o que acabou por devastá-lo. Mas mesmo esses fatores não parecem justificar um declínio tão vertiginoso. Tento imaginar o fardo diário que ele carregava e que o fazia vergar em direção ao solo. “Que fazer, com o inferno no peito?”, perguntava-se Maiakovski. Nesse sentido, a morte pode ter representado uma libertação.>
Meu amigo tinha uma família atenciosa, era admirado por suas ex-mulheres e possuía talentos insuspeitados. Eu cultivava a remota esperança de voltar a vê-lo num dos nossos encontros periódicos, sempre que vou a São Paulo. Comentamos isso diversas vezes e o convidávamos sem obter resposta. Sequer sabíamos onde morava. Na cerimônia de despedida, meus amigos descobriram que nos últimos tempos ele viveu num centro da Rosa Cruz e passou seus meses derradeiros num hospital. Um deles o definiu como “uma alma doce e um espírito atormentado”. Impossível ser mais preciso.>
Por esses dias, procurei entre meus antigos e-mails uma mensagem enviada por ele em janeiro de 2004. Morava então na Europa e tinha acabado de se casar. Trabalhava como pintor enquanto buscava regularizar sua situação. Parecia empolgado com a nova vida, que relatou minuciosamente. E ainda encontrou tempo para me consolar pela morte do meu pai, que tinha o mesmo nome dele, ocorrida meses antes. Ao reler esse trecho, tive a impressão de que, involuntariamente, meu amigo mandava uma mensagem para o futuro e me consolava por seu próprio fim e pelas decisões que iria tomar nos anos seguintes, incluindo o silêncio absoluto. Isso me deixou ainda mais comovido.>
“Imagino a dificuldade dessa situação, principalmente porque é um acontecimento recente demais. O que te desejo é muita força para continuar tocando seu barco, venha o que vier. A frase é mais que batida, mas verdadeira: a vida continua. E ela traz muitas coisas que não gostaríamos de receber, mas, infelizmente, se brigamos com o que se apresenta, a angústia e a dor parecem só aumentar. A aceitação, dentro dos limites de cada um, óbvio, pode ser um apaziguador, um tranquilizador para toda a agitação de emoções que fatos como esse provocam dentro da gente.”>