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Paulo Sales
Publicado em 10 de agosto de 2025 às 05:00
“Alguém clamando por socorro /A 2000 km de distância /É tão longe /É como aquela velha foto /Esquecida amarelada /De teus pais andando à beira da estrada /Aquele mato aquela cachoeira /As crianças nuas /É tão longe /É como aquele tempo em que /A bondade tinha sua recompensa. //Uma foto em preto e branco /De um mundo tão remoto /Impossível regressar /Àquela juventude. //Um bebê roubado sem carinho /Sem mãe sem leite /É tão longe /É como aqueles dias nos /Nossos corações /Em que antes de tudo /Imperava a felicidade.” >
Esses versos – sinceros, singelos e sofríveis – foram escritos no dia 10 de fevereiro de 1991, durante uma viagem a Recife. O autor acabara de completar 21 anos e dava vazão a uma inevitável propensão à nostalgia, algo inusitado para alguém tão jovem. Difícil crer que o “tão longe” contido neles faz referência a um intervalo de pouco mais de dois anos, quase um sopro de horas. Há um idealismo enviesado, ou ao menos o esboço de um tempo feliz que curiosamente pertence ao passado, e não ao futuro, como se o autor enxergasse o outrora, e não o porvir.>
O poema ficou esquecido num armário até ser reencontrado hoje pelo próprio autor – ou melhor: pela pessoa em que ele se transformou, tão diferente e ao mesmo tempo tão íntima daquele rapaz impetuoso. Como se fosse um irmão mais velho ou um velho amigo. Um homem de 55 anos, fios brancos em profusão dominando paulatinamente o cabelo e a barba, que bebe os últimos goles de um chardonnay ordinário no aconchego da varanda.>
É possível que naquela época eu já antevisse a incômoda capacidade que o tempo tem de se converter em poeira. Costumava ficar intrigado quando minha mãe relembrava da sua infância e arrematava com um “parece que foi ontem”. Era como se a aurora de sua vida tivesse a distância de uma eternidade e ao mesmo tempo de um instante. Hoje, a minha aurora também é medida em eternidades, embora alguns fatos permaneçam vívidos como tropeções.>
As reminiscências contidas no poeminha foram inspiradas numa viagem que fiz com amigos em janeiro de 1988, pouco antes de completar 18 anos. Enfrentamos 32 horas de ônibus para chegar em Brasília e de lá mais seis horas até uma pequena cidade chamada Ipameri, no sul de Goiás. Ficamos numa fazendinha linda, com tucanos, papagaios, quedas d’água e pés de goiaba, onde moravam pessoas cuja bondade era quase uma característica física. Ipameri foi meu primeiro clarão, minha descoberta do mundo, e ali percebi que ele merecia ser desbravado.>
Foi lá que escutei Bob Dylan pela primeira vez. Tínhamos ido à casa de uma prima do meu amigo, mais velha do que nós, chamada Ângela. Não esqueço o assombro provocado pela agulha tocando o vinil e revelando os acordes simples no violão, a gaita estridente e a voz fanhosa cantando Mr. Tambourine Man. Era como uma epifania. Mais tarde, Ângela nos convidou para tomar um chá alucinógeno feito com cogumelos, mas por algum motivo isso acabou não acontecendo. Meninos que éramos, deve ter faltado coragem.>
Essas memórias envolvendo o poema e a viagem me levaram até uma canção que ouvia bastante quando criança e que escuto agora, chamada Aquela Coisa Toda, de Oswaldo Montenegro. Ela traz a reboque uma avalanche de lembranças vívidas de casas, ruas, pessoas, sentimentos difusos, saudades avassaladoras e a certeza de que a memória é uma companheira de jornada muitas vezes cruel, mas da qual não conseguimos – ou não queremos – nos livrar.>
“Olhe bem nos meus olhos. Olhe bem pra você. O fato é que a gente perdeu toda aquela magia. A porta dos meus 15 anos não tem mais segredo. E velha, tão velha, ficou nossa fotografia”. Pergunto a mim mesmo onde foram parar meus 15 anos, meus 18 anos, meus 21 anos sem portas ou segredos, abarrotados de poemas, viagens e amores que pareciam imortais. Eles permanecem aqui, em algum canto obscuro, ajudando a sustentar a essência do que sou: um emaranhado de recordações que me impelem para o futuro.>