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Saulo Miguez
Publicado em 10 de setembro de 2018 às 14:17
- Atualizado há 2 anos
No dia 02 de setembro, o Museu Nacional foi tomado por chamas que levaram, além do prédio com mais de 200 anos, 90% de um acervo com 20 milhões de itens. O caso repercutiu internacionalmente, as redes sociais e portais de notícias se encheram de informações e, num passe de mágica, ficamos sabendo o (baixo) orçamento do museu, conhecemos Luzia, o meteorito de Bendegó e, mais do que isso, nos tornamos experts em administração de relíquias, gestão de recursos públicos para a cultura e combate a incêndios em prédios sem manutenção.>
Quatro dias depois, um candidato à presidência do Brasil sofreu um suposto atentado enquanto fazia campanha na cidade de Juiz de Fora, em Minas Gerais. No segundo passe de mágica em menos de uma semana, o país se tornou especialista em segurança pública, prejuízos causados à democracia pela violência e anatomia do trato gastrointestinal.>
Para além das controvérsias de ambos os casos, e do fato da faca e do fogo terem acirrado a polarização política em nosso meio social, chama atenção nessa história toda a capacidade que NÃO temos de sustentar duas pautas fortes em nossas esferas discursivas. Parafraseando Ritchie no clássico Menina Veneno: incêndio e atentado, as timelines dos brasileiros são pequenas demais para vocês dois.>
De acordo com Nelson Traquina, o conceito de noticiabilidade pode ser definido como o conjunto de critérios e operações que fornecem a aptidão de merecer um tratamento jornalístico, ou seja, possuir valor como notícia. Definição que a cada dia está mais flexível.>
Em tempos de Twitter, nossos trends são ocupados muito mais por divórcios e casamentos de famosos, versos de funks proibidões e tags indicando nudes, do que propriamente por fatos que provocam algum efeito prático na rotina do país; ainda que esses aconteçam diariamente.>
A História então é invadida por dois acontecimentos de valor-notícia raiz - daqueles que serão contados para os netos - e simplesmente os tratamos como mais uma música do Carnaval. Algo que aconteceu, mas já passou e, por mais que nenhuma providência tenha sido tomada, já é considerado arquivo morto.>
Para se ter uma ideia do quão desinteressante já se tornou o incêndio do Museu Nacional, exatamente uma semana após o ocorrido, nenhum dos grandes portais de notícias do Brasil registrou qualquer nota do caso entre as cinco mais lidas do dia. No entanto, está por lá o casamento discreto de William Bonner com Natasha Dantas. Confira a lista ao final do post.>
Cumpre-se assim uma das profecias apocalípticas de George Orwell, em 1984, que projetou uma sociedade onde a história é a todo momento apagada e reescrita de acordo com as necessidades do Partido. A diferença é que nem o gênio inglês foi capaz imaginar que num futuro livre e democrático esse deslembramento seria feito de forma espontânea pelos próprios cidadãos prejudicados pelos fatos. Foi assim com o rompimento da barragem de Fundão, com o assassinato da vereadora Marielle Franco e agora com o incêndio do Museu Nacional, isso para citar apenas alguns casos.>
Outro fato não alcançado por Orwell foi o desperdício, pelo cidadão comum, do poder de crítica e análise proporcionado pela internet. A independência e pluralidade prometida pela web cai por terra a cada nova bomba jornalística, quando as redes sociais se tornam caixas de ressonância de opiniões unas e, na maioria das vezes, frágeis, autoritárias e que duram no feed o tempo de uma curtida casual. -- Eis a lista das notícias mais lidas do domingo (9) G1: General Mourão admite que, na hipótese de anarquia, pode haver 'autogolpe' do presidente com apoio das Forças Armadas; Idosa é mantida em cárcere privado por corretor de imóveis em Piracicaba; Bolsonaro no Twitter: 'Estou bem e me recuperando'; Adélio Bispo é transferido de Minas Gerais para Mato Grosso do Sul; Criança que sobreviveu sozinha 5 dias comendo bolachas terá acompanhamento.>
UOL: Bonner e Natasha Dantas se casam em cerimônia íntima; Palmeiras vence, aumenta crise no Corinthians e mantém caça ao líder; Bolsonaro: campanha recria camisa com sangue e deve exibir facada; Estrada que liga Manaus ao resto do país ameaça abrir 'Alemanha' na mata; Classificação: Inter bate o Grêmio e retoma a liderança do Brasileirão.>
Estadão: Quem nega o atentado contra Bolsonaro assume viver uma alucinação coletiva; 'Legitimidade de novo governo pode até ser questionada', diz general Villas Boas; Ibope vê consolidação de votos pró-Bolsonaro; Imagens de 8 de Setembro; 'Meu pai segue evoluindo'.>
Globo: Igreja contrata os 4 advogados de autor de facada em Bolsonaro; Pai de jovem baleada na cabeça desabafa: 'Faz comigo se é homem'; Militares e servidores vão gerar déficit de R$ 90 bi na Previdência; Juíza quebra sigilo de dados de celulares do agressor de Bolsonaro; Ação da PM com Bope termina com 20 presos e 1 morto em Angra, RJ.>
Saulo Miguez é jornalista>
Texto originalmente publicado no Facebook e replicado com autorização do autor>