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Senta que lá vem...
Jorge Gauthier
Publicado em 18 de janeiro de 2019 às 09:27
- Atualizado há um ano
A cena era clássica todo domingo na pequena casa de paredes verdes que morávamos no interior da Bahia, na cidade de Paripiranga. Na vitrola cinza, o vinil de João Mineiro e Marciano tocava sem parar. No fogão, comida boa e cheirosa. Na sala, um bailar interminável ao som do brega sertanejo que ecoava pelo sertão. Os versos de 'Seu amor ainda é tudo' e 'Ainda ontem chorei de saudade' já saiam sozinhos da vitrola e se confundiam com o cheiro de feijão com mocotó que meu velho pai amava fazer. Sem camisa e com duas colheres nas mãos, painho começava seu bailado solitário bem cedinho (não existia lei do silêncio e minha avó, que era nossa vizinha também amava a cantoria). Quando repousava a agulha no vinil ele seguia para o quarto dele com minha mãe (que não gostava de acordar cedo aos domingos) puxando ela para dançar. A camisola vermelha com rendinhas bordadas ficava toda amassada com a dança de pés descalços entrelaçados pelo chão de pisos azulados. As próximas ‘vítimas’ éramos eu e minha irmã. Éramos arrastados para aquele bailado interminável. Na época aquelas músicas pareciam torturantes. Saímos da cama arrastados e transferimos o sono para o sofá mesclado por momentos em pé ‘obrigados’ a compor a valsa sertaneja. As letras eram incompreensíveis. Não conseguia entender o contraste de tanto sofrimento cantado com a alegria de painho dançando aquelas canções que só reduziam o volume na vitrola lá pro meio-dia quando o almoço era colocado no chão. Sim, era uma tradição comermos nas bacias os bolos de feijão e farinha caprichados com um suco de limão (quando eu ainda não era alérgico). Marciano, que hoje se despediu da vida terrena, era o áudio oficial da minha infância pelo olhar de painho junto com Demônios da Garoa, Lindomar Castilho e tantos outros. Certamente o céu hoje vai ser uma festa com feijão, mocotó e com painho colocando uma agulha na vitrola. Hoje, vou arrumar hoje um feijão pra comer. Botarei o fone no ouvido e, quem sabe, até começarei a bailar naquele mesmo valsado de memórias tão lindas de um tempo que não voltam mais, mas que deixaram a lembrança da alegria da simplicidade das canções e do amor. Ouça você também:
Jorge Gauthier é chefe de reportagem do Correio
Texto originalmente publicado no Facebook