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Publicado em 29 de junho de 2024 às 11:00
No 2 de Julho, a Cabocla e o Caboclo percorrem os contornos da escarpa sobre a qual se construiu a Cidade da Bahia. A Cidade que não existe sem a Baía e lhe tomou o seu nome por antonomásia desde o início; sem isso, não se compreende sua história. Do Recôncavo, vieram quase sempre suas riquezas, como o açúcar e o algodão, a cachaça e o fumo, para serem levados a muitos outros portos do mundo. Mais tarde, também o cacau vindo do Sul passaria a alcançar, a partir do seu porto, outros continentes. E por aí circula ainda hoje sua maior riqueza, o seu povo. Desde que os Tupinambás atravessavam a nado ou em canoas, aliados dos ventos e das marés, muita coisa vem acontecendo. Principalmente nestes primeiras dias do mês de Julho. >
No decurso dos séculos, chegaram navios de vários sotaques e calados. Não se ia de Lisboa a Goa sem por aqui passar. Fizeram guerras entre si e contra os antigos senhores de Kirimurê. Dentre os estranhos adventícios, uns eram mais mouriscos, outros mais galegos, outros ainda mais gazos, como aquele que o Caboclo Curiboca encontrou perdido na praia da Gamboa, em Itaparica... Algumas lanchas arremessavam arpões terríveis contra as baleias que vinham do lado de baixo do planeta. >
O que houve entre aquele inverno de 1822 e o de 1823 foi uma descontinuidade tão radical quanto incompleta na configuração de Salvador e seu Recôncavo, inconformados com o mando lusitano e desejando se livrar disso, como já se vira de modo tão dramático no movimento dos Alfaiates.>
Essa peleja já havia sido deflagrada desde a morte da Madre Joana Angélica, em fevereiro daquele ano, no portão da clausura do convento da Lapa. O Comandante das Armas brasileiro, Manoel Pedro, fora substituído pelo português Madeira de Melo. Antes da guerra declarada, era uma arrelia atrás da outra, sem que se pudesse cear sem o medo de que os marotos viessem perturbar o sossego, atrás de comida, vinho e dinheiro.>
Naquele 25 de junho de 1822, na Vila de Nossa Senhora do Rosário do Porto da Cachoeira, um balaço de canhoneira feriu o jovem Soledade, um marcação da banda militar que saudava a proclamação do príncipe Pedro. Um tiro contra um músico e soldado preto bem ali no cais do Paraguaçu. >
Ano e pouco depois, na manhã do dia 2 de Julho, partiu a esquadra lusitana com seus comandantes e muitos caixeiros e soldados. Não aguentou o cerco que os baianos, brasileiros e mercenários lhe impuseram, por terra e por mar. Povo e soldados como Souza Lima. Foi uma peleja prolongada, em muitos campos de batalha, com muita gente envolvida. Muitos caboclos, pretos, mestiços e brancos.>
Em Pirajá, naquele 8 de Novembro, o corneteiro Luís trocou o toque e mandou avançar. Ficava a Estrada das Boiadas, então, fechada para a carne que poderia chegar da feira do Capuame e outras do Sertão... Do Largo do Tanque para cima, português não passava... Só tentando pela praia de Itacaranha. A carne das charqueadas da Banda Oriental não seria suficiente... e como tardava...>
Sem a farinha de Nazaré e Maragogipe, o dendê de Coqueiros e Najé, Pirajuía e Valença, Cairu e Jaguaripe, sem as frutas, porcos e galinhas das ilhas, e agora sem as mantas de carne do Sertão, não podiam mais ficar. Nada produziam, só tomavam, acostumados a pilhar desde o Oriente. >
Batalhões de todas as qualidades de gente montavam guarda, defendiam-se, investiam. A flotilha de João das Botas comandou o bordejo de Itaparica, guardando a entrada do Paraguaçu e a contracosta do Funil. Esse João conhecia bem os caprichos dos bancos de areia de Cacha Prego. De sua ciência nativa se valeria o Almirante Cochrane. >
Às praias de Saubara e Bom Jesus dos Pobres, a comida vinha com as mulheres chamadas caretas do mingau, nos potes feitos em Maragogipinho e Aratuípe. Chegava também a cachaça do alambique do engenho de Aramaré para aguentar o vento sul da noite, sem que disso sequer suspeitasse Dona Maria Bárbara. >
Na Gameleira, as mulheres da banda da praia partiam enfurecidas para cima dos marotos, comandadas por Maria Felipa e sua comadre Brígida de Saubara. Maria Felipa quase matou o vendeiro João, que vivia a humilhar os nativos. Não conheciam descanso as vedetas de cima das colinas, espreitando a aproximação dos navios. Botaram para correr os marotos ousados naquele 7 de Janeiro em Itaparica. Se estes tomassem a ilha, subiriam o Paraguaçu...>
De Pedrão vieram os vaqueiros com seus gibões e espingardas, em cavalos acostumados à correria. Tudo convergindo na mesma peleja, almejando alguma coisa que se não sabia bem como seria, com cheiro de Liberdade. >
Na Ilha de Maré e na Barra do Paraguaçu, Maria Quitéria mostrou a que vinha. A moça de São José das Itapororocas tomou da roupa do cunhado e mostrou seu destemor e destreza. Quando o pai a avistou perfilada entre os Periquitos na Vila da Cachoeira, não havia mais jeito. Na Pituba, em Itapuã, podia-se ver passar aquele soldado tão corajoso... >
Onde estavam os Tupinambás nessa história toda? Ajoelhados durante a missa, como naqueles quadros dos livros de história-pátria? Adorando a moça Ceci, como no romance de José de Alencar? Ensinaram os lusitanos a preparar comida. Estes chegaram aqui sem trigo, aveia ou centeio, sem vinho, bolachas e azeite... Caíram na farinha de mandioca, no beiju, nas aguardentes de raízes, nas caças moqueadas e nos peixes assados debaixo da terra. Beberam das águas mais puras e comeram das frutas mais frescas para tratar o escorbuto...>
Os Tupinambás tiveram contra si os mais terríveis aliados dos portugueses: bacilos e fungos, bactérias e vírus trazidos por eles e seus cativos. Crianças ardendo em febre, mulheres perdendo suas crias, guerreiros cobertos de pústulas... Precisaram retroceder, buscar as terras mais altas e distantes, as matas mais fechadas. Ou negociaram alianças, casando as filhas com os homens que desciam dos navios. E assim como enfrentavam os invasores, aprenderam a incorporar a sua força, comendo suas carnes e assimilando seus dons espirituais. O Caboclo Curiboca fez questão de ter um descendente de sangue misturado com o daquele holandês rosado andando a ermo pelo apicum, coitado... >
A gente da terra acolheu os cativos fugidos e formaram-se quilombos. Mais gente para trabalhar, produzir comidas e crianças. Trabalhar, comer, dançar e folgar. Com o tempo, foram misturando seus deuses entre si e com os santos que chegavam de longe. E os arranjos de tantos cromossomos diferentes foi – e continua – formando uma civilização tensa, com muitos abismos e pontes, idas e voltas.>
Quando se tratou de festejar a Independência, os governantes elegeram como ícone da nova nação um homem a que chamaram Caboclo e, mais tarde, uma mulher chamada Cabocla. Esses Caboclos e Caboclas passavam em cortejos pelo Recôncavo e Baixo Sul, até o Sertão de Caetité. Mostraram aos governadores, padres e militares que o povo os amava mais que a qualquer autoridade. E nos seus carros arrastavam multidões apaixonadas, recebendo vivas e hinos, frutas e charutos, bilhetes e moedas, alfazema e mel. Todo mundo que ama a Liberdade pode se reconhecer ali em cima desses carros verdes, carros de guerra enfeitados com tantos adereços. Trono e peji, andor e altar. >
Quando se pergunta de onde vieram o Caboclo e a Cabocla, fico a pensar se a pergunta não deveria ser: quando subiram nos carros enfeitados para os cortejos em tantas cidades? A Cabocla e o Caboclo já estavam em toda parte, descendentes do Caboclo Curiboca, dos quilombolas resultados de tantas misturas. Os encantados continuam cantando e dançando em suas festas pela Bahia e Brasil afora, vestidos de penas ou de couro, ou ainda de marinheiro, como o Caboclo Marujo, vizinho de Iemanjá. >
Quando a Cabocla e o Caboclo passam triunfantes da Lapinha ao Campo Grande, bordejando a cumeeira da Falha Geológica, contemplam a Baía e sorriem para essas águas e suas margens. Imperatriz e Imperador puxados e empurrados por seus fiéis em êxtase, passando em revista tão belo reino ainda sonhando com Liberdade... >
*Ilheense. Morador do Garcia. Professor Titular Aposentado de História da UFBA. Pesquisador do Carnaval de Salvador e das Festas de Independência em Salvador e Itaparica e das diferenças culturais.>