'O colorismo se vale da aparência física dos corpos negros para fazer uma escala de preconceito', diz pesquisadora

Termo é utilizado para classificar a discriminação racial pela cor da pele de indivíduos da mesma raça

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  • Larissa Almeida

Publicado em 20 de novembro de 2023 às 07:00

null Crédito: Lucas Assis

Lojas, hospitais e até mesmo nas ruas. Esses são alguns dos locais onde a aposentada Maria do Amparo Araujo, 66 anos, lembra de já ter sentido na pele as diferentes faces do racismo. O elo entre todos os casos foi o mau tratamento recebido por ela, por ter a pele mais escura em relação a outras pessoas negras de pele mais clara. Por ser retinta, Maria já foi confundida como babá da sua própria filha, destratada enquanto fazia compras e até mesmo barrada em lugares.

“Fui abordada no shopping por pessoas que diziam que minha filha não era a minha filha. Ela tinha se perdido por entre as roupas, eu fiquei procurando e, quando achei, eles não acreditaram em mim. Outra vez, na Baixa dos Sapateiros, chegaram até a carregar ela porque ninguém acreditava. Isso porque ela era branca, tinha os olhos claros e, ao ver minha cor, estranhavam. Eu me sentia constrangida, aborrecida e, de imediato, provava que ela era minha filha”, relata.

As memórias vívidas de Maria do Amparo datam mais de 30 anos. Nos dias atuais, sua filha, a técnica em Radiologia Adriana do Amparo Araujo, 36, se autodeclara parda por ter pele negra clara e traços negroides menos evidenciados. Diante da convivência com a mãe e outras pessoas retintas, aponta que o racismo que enfrentou ao longo da vida foi diferente daquele enfrentado por elas.

“Trabalhei em uma empresa que era dentro de um prédio de padrão social alto, no Centro de Salvador, e volta e meia eu precisava andar de elevador. Quando eu andava no elevador normal, eu sentia os olhares de médicos que andavam naquele ambiente por eu estar com cabelo cacheado, a raiz crescida, natural. Com outras colegas retintas, já teve situações de o elevador estar vazio e eles nem quererem entrar. Então, era um racismo disfarçado”, pontua.

Nas situações de racismo vivenciadas por Maria e Adriana do Amparo, ambas negras, o colorismo foi o termômetro que dividiu a intensidade do preconceito racial. Carol Barreto, designer de moda e docente do Bacharelado em Estudos de Gênero e Diversidade da Universidade Federal da Bahia (Ufba), explica o que é colorismo “[Uma mazela colonial que visa classificar o caráter de humanidade [do povo negro] a partir das características de negritude que mais ou menos são expressas”, define.

Em outros termos, o colorismo se vale da aparência física dos corpos negros para fazer uma escala de preconceito: quanto mais retinta a pele, menos dignidade é conferida ao sujeito. “O colorismo classifica e divide a população negra em diferentes posições, teoricamente de ‘menos violência’ para peles negras mais claras e de ‘mais violência’ para peles mais retintas. [...] A pele mais retinta reverbera socialmente como uma afirmação contínua do não pertencimento ao grupo branco. Este fato indica um atestado de maior exposição a violências raciais”, explica Nayara Melo, mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e analista de pesquisa do Observatório da Branquitude.

No dia a dia, essa realidade ficou evidente para a estudante e autônoma Larissa Rosa dos Santos, 21 anos, através das relações familiares. Filha de pai pardo e mãe preta, ela diz que as experiências com racismo só ocorreram consigo e com sua mãe. “Minha mãe já sofreu bullying quando era criança por conta da cor da pele. Enquanto eu era adolescente, sofri bullying por causa do meu cabelo e de traços mais característicos de pessoas pretas. Enquanto isso, não ouvi meu pai falar de ter sido destratado por causa da cor”, afirma.

Para o professor Samuel Vida, coordenador do Programa Direito e Relações Raciais da Ufba, é fato que as pessoas pretas retintas estão mais sujeitas a situações de racismo expressos na forma de violência moral e constrangimentos sociais em relação aos pardos. Apesar disso, ele alerta que esse cenário não anula a discriminação racial a que também são expostas as pessoas pardas. “Todos os estudos mostram que os índices de exclusão, seja na educação, salário, habitação, acesso à saúde, são muito próximos entre pretos e pardos”, ressalta.

Nayara Melo destaca que, apesar de poderem experimentar alguns acessos sociais, os pardos nunca podem experimentar de fator ‘ser branco’. “Por outro lado, a pessoa negra de pele escura não passa pela dúvida, mas pela reafirmação contínua que sua pele é distante de forma nítida do ser branco. São violências diferentes, a dúvida e a reafirmação, entretanto as duas situações reverberam o mesmo fato: não ser branco”, complementa.

Enquanto as manifestações racistas direcionadas aos corpos pretos e pardos são diferentes, os reflexos dos seus males unem as experiências de ambos. “Ao distanciar cada vez mais desse ‘ideal branco’, a pessoa negra perpassa por violências cotidianas, inclusive no âmbito de saúde. Nos estudos de saúde coletiva com recorte de raça e cor, é nítido ver como a declaração parda e preta acumula desvantagens em condições clínicas, como o maior acometimento de extrações dentárias, maiores índices de violências obstetrícias para mulheres pretas e pardas”, elenca Nayara.

Diante do momento atual do Brasil, que tem 56% da população autodeclarada negra, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua, publicada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o professor Samuel Vida acredita que o debate sobre colorismo fica em evidência. No entanto, há confusão sobre o critério para a identificação racial negra, que ele frisa que é invariavelmente pela leitura fenotípica, ou seja, pela cor da pele e traços negroides.

“Pessoas com o fenótipo branco, que não sofrem nenhum tipo de preterição social, que não são alvo da polícia como suspeitos e não são desqualificadas pela sua mera aparência, passaram a reivindicar acesso às políticas de inclusão e afirmativas, argumentando que há origem biológica na família, que a avó ou pai são negros. Essas pessoas, do ponto de vista da realidade brasileira, não são negras. O fato de ser filho de uma pessoa negra ou ter uma avó negra não qualifica alguém como negro, pelos critérios históricos que regem as relações raciais no Brasil, assim como não classificaria um pardo de traços negroides como branco”, finaliza.

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