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Da Redação
Publicado em 6 de maio de 2017 às 08:32
- Atualizado há 2 anos
Quando adolescentes, eu e meu irmão, o violinista Felipe Prazeres, fomos protagonistas de uma séria revolta, que durou eternos vinte minutos, contra a música "imposta"por nossos pais, afinal, sendo filhos de um maestro e de uma cantora lírica, só ouvíamos música clássica dentro de casa. Esperávamos em troca uma severa reprimenda e ficamos bem decepcionados com a placidez do nosso pai ao parar uma sinfonia para colocar na Rádio Fluminense (A Maldita FM, que só tocava rock ) com a maior naturalidade. >
Fui eu que tive a cara de pau, com o olhar de aprovação do meu irmão, de pedir pra que ele colocasse de volta a fita (sim, sou velho, fita cassete) da "Sinfonia Fantástica" de Berlioz. Pois bem, ali começariam os nossos problemas. Como convencer nossos amigos tijucanos de que o que ouvíamos era mais transgressor do que a Madonna, que estourava nas paradas? Não convencemos. Mas as tentativas foram o material de trabalho pelo qual, hoje, somos conhecidos por tirar a música clássica da cadeira de balanço da terceira idade para dar uma volta por aí (muito embora ela sempre apareça de volta à esta mesma cadeira para fazer umas visitas, para nossa alegria). Muitas vezes, quando adolescente, parei para pensar na vida dos médicos. Como jantam sabendo que perderam um paciente naquela noite? Como convivem nas festas sabendo que seus pacientes sentem dor? Quando me tornei um "profissional" da música de concerto, percebi que teria o mesmo dilema ao enfrentar o grito de dor do último movimento da sinfonia nº6 de Tchaikovsky, a "Patética". Tchaikovsky faleceu alguns dias depois de compor este movimento, sob suspeita de suicídio (ou mesmo assassinato) por ser homossexual, muito embora a versão oficial diga que foi cólera. Minhas duas ex-mulheres sempre adivinhavam quando eu estava regendo Mahler na orquestra. >
As marteladas de sua sexta sinfonia eram por demais invasivas para que eu passasse incólume por aquela semana de ensaios. E de todas as peças, as de Bach são as que mais me dilaceram. Suas cantatas e missas falam diretamente com a alma e mostram toda a pequenez de uma humanidade ainda muito longe da evolução da espécie. Quando chego em casa, muitas vezes ouço uma cantata de Bach junto com a leitura das primeiras páginas dos jornais.>
Meu ódio dos políticos larápios aos políticos racistas- rapidamente se transforma em comiseração, mesmo que eu não busca este sentimento. Lidamos com um material radioativo, perigoso, para pessoas "fora da sala de jantar", parodiando Gil e Caetano em sua incrível "Panis et Circenses" (uma das minhas canções preferidas e manual de vida). Como não nos censuram? Como nos deixam tocar? Hoje eu rio sozinho da imagem de "bom moço" que passamos ao trabalhar com música clássica. Rio, inclusive, de alguns colegas que realmente acreditam nesta imagem enquanto ouço o "Dies Irae" do Réquiem de Verdi. Já não sei se luto contra ou a favor a esta imagem, aliás. Talvez seja um excelente disfarce para que continuemos a transgredir com o status quo sem ser importunados por bombas de gás lacrimogêneo ou cassetetes na cabeça enquanto tocamos Shostakovich. Compositores clássicos, com raras exceções, não se tornaram ricos. Sua música não vende cerveja, assim como as orquestras. A sobrevivência de ambos vem quando conseguimos transmitir de forma convincente esta transgressão, quando mostramos que ela é fundamental para entender o mundo de hoje, quando mostramos o porquê dela sobreviver impassível aos séculos. Um excitante e bélico mundo radioativo. Consuma sem moderação. >