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Professor da Escola Politécnica, Departamento de Engenharia Química e do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da Ufba
Marcio L. F. Nascimento
Publicado em 22 de novembro de 2017 às 13:23
- Atualizado há um ano
Em meados de 1986 uma curiosa, inteligente e divertida canção, muito diferente das habituais, tocava nas rádios de Salvador, num crescente sucesso, estourando no carnaval do ano seguinte. Estranhamente, ela começava numa língua indígena, numa suave base de samba e reggae, à época um novo suingue musical, genuinamente baiano.
Embora muitos lembrem da canção como “Eu Sou Negão”, o título original era “Macuxi, Muita Onda”. Obra do maestro, cantor e compositor brasileiro Geronimo Santana Duarte (n. 1953), que bradava um refrão forte, afirmativo e de significativa identidade. Celebram-se portanto trinta anos de um álbum que precisou ser gravado às pressas para dar vazão ao tremendo sucesso radiofônico, que unia toques de candomblé com ritmos latinos (como a salsa, o reggae e o merengue) e o incomparável samba.
A narrativa começava mais ou menos da seguinte forma: primeiro, havia um admirável povo dono destas terras, chamados erroneamente de índios. Estrangeiros a invadiram. Outro magnífico povo também chegou, de um modo forçado, mas mesmo assim fez deste espaço seu novo lar.
Ambos, índios e negros, foram escravizados. No entanto, a história oficial ainda será reescrita, pois hoje se sabe que tanto negros quanto índios moravam nestas terras antes da colonização. A descoberta dos restos mortais de uma mulher com características negras e que viveu no Brasil entre 12 mil e 13 mil anos atrás põe por terra a versão tradicional. Cientistas batizaram tal fóssil de Luzia, que viveu em Belo Horizonte, Minas Gerais e faleceu jovem, entre seus 20 e 25 anos. Este fato científico apenas aproxima negros e índios, tornando ainda mais significativa a canção do poeta.
De fato, “Eu Sou Negão” apresenta dois momentos, literalmente duas canções, vinculadas a dois povos, indígenas e negros, os primeiros brasileiros. A parte mais visível e mais longa da obra discute o enfretamento entre duas vertentes do carnaval baiano – o trio elétrico e o bloco afro, sob uma característica batida de samba e atabaques. Já a parte mais curta da canção começa assim, sob ritmo de reggae, em makuxi: Ema’non amiiri (você é bonita) - que poderia ser alguém, ou mesmo a natureza.
Os makuxis dominaram boa parte do Brasil, habitando em especial a região norte, onde hoje existe o belo Monte Rorâima, que na língua indígena quer dizer “Serra Verde”, devido ao seu admirável e característico formato. Comiam ikei (beiju) e viviam felizes com suas tradições, costumes e canções (Eren), acompanhados da natureza, amando a Lua (Kapoi), a Terra (Anauá), diversos rios (como o Cauamé), e lagos (como o Caracaranã), e representados por grandes caciques (como o famoso líder guerreiro Tuxaua). Até a chegada do Mal (Kanaima) por meio dos colonizadores estrangeiros.
O nome original da canção em makuxi seria, portanto, Miita, uunta (boca, minha boca, e lê-se uunda mesmo). No entanto, por meio de uma licença poética, o compositor fez um jogo de palavras utilizando-se de uma gíria comum à época (“muita onda”). Infelizmente, nestes tempos contemporâneos do politicamente correto, tratar alguém por negão passou a ser quase uma ofensa.
Entretanto, é possível afirmar que muitos que apreciam a canção concordam com a definição do poeta, ao afirmar que ser negro é trazer consigo toda a sua beleza, toda a sua cultura, tradição e religião.
Aguarda-se com esperança o brotar, a qualquer momento, de novos cantos deste povo brasileiro, miscigenado. Enquanto isso, a canção do genial maestro continua a ser uma declaração dos orgulhos índio e negro, um verdadeiro hino, antológico, que continua forte e atual, e que finalizava com uma bela e célebre afirmação dita a plenos pulmões: “Meu Coração é a Liberdade”!