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Da Redação
Publicado em 12 de outubro de 2022 às 06:00
Davi Kopenawa, xamã, Txai, líder indígena da etnia Yanomami, disse certa vez que “Se não houver mais xamãs para segurar o céu, ele não ficará no lugar”. E complementa explicando que “Quando todos nós tivermos desaparecido, quando todos nós, xamãs, tivermos morrido, acho que o céu vai cair. É o que dizem nossos grandes xamãs. A floresta será destruída e o tempo ficará escuro”. Esse ensinamento é um lampejo do que a cosmogonia Yanomami tem para nos ofertar pra esses tempos. É só através da biodiversidade, da diversidade e da defesa da vida que o céu fica em seu lugar. Quando o princípio da defesa da vida, em sua radicalidade, se romper pelas escolhas e ações humanas, quando ele se corroer, haverá uma queda do céu. Nesse sentido, falando a partir da sua visão de mundo, da sua cosmogonia, Davi Kopenawa nos alerta dos perigos que podemos ter que enfrentar quando os grandes defensores das florestas, da vida e da biodiversidade, forem mortos. Davi nos alerta, através do que para nós colonizadores, são imagens, alegorias, metáforas e narrativas, os resultados altamente trágicos que podem cair sobre nossos colos quando relativizamos a barbárie, os absurdos e as violências em todas as suas formas de expressão (opressão, destruição, exploração e silenciamento). Nosso txai é uma viva força da natureza, recém Doutor Honoris Causa pela Universidade de Roraima (UFRR), é voz e porta voz dos povos originários, do Brasil de antes do Brasil, da chamada Pindorama. >
Faz um certo tempo que o céu caiu, venho aqui pra contar essa história pra vocês. A tragédia se forja na vida e quando a recontamos, mantemos viva a memória do que precisa ser lembrado, pra não repetirmos a história. Eram dois meninos, dois curumins, um vivia o seu quinto ano de vida aqui na terra, o outro, maiorzinho, já tinha sete anos e também brincava por esses solos. Era mais um dia pra descobrir novos jeitos de nadar, de caçar, de se enrolar na terra, era mais um dia pra ser criança e eles tomavam banho numa região chamada Parima, localizada na comunidade Makuxi Yano, terra indígena Yanomami. A brincadeira foi interrompida por uma máquina do garimpo ilegal. Mas acontece que a brincadeira parou, foi abortada, a máquina sugou as duas crianças e as cuspiu para outro lado do rio, a correnteza as empurrou rio abaixo junto com os metais das balsas de garimpo ilegal. Aqueles dois serezinhos, aqueles dois corpinhos feitos de brincadeira, agora interrompidos, cindidos, sugados e cuspidos pela máquina humana. Digo máquina humana porque ela não é neutra, cada parte daquele metal assassino é feito por mãos de gente humana. Tem muitas mãos naquele metal que matou aquelas duas crianças.>
“Somente na região do Parima, onde está localizada a comunidade Makuxi Yano e uma das mais afetadas pela atividade ilegal, foram atingidos 118,96 hectares de floresta degradada, um aumento de 53% sobre dezembro de 2020 (...)>
Outras duas crianças, de 1 e 5 anos, morreram afogadas após caírem no rio enquanto fugiam dos disparos de garimpeiros armados que invadiram a comunidade Yakepraopë em maio, na região do Palimiu, também em Roraima” (1)>
Se duas crianças são brutalmente mortas dessa forma e nós não paramos um país, todas nós morremos junto delas. Todas nós morremos juntas com elas. Afirmo isso porque um dos principais sinais de saúde mental é a nossa capacidade de experimentar a empatia, função existencial, ética e psicológica de perceber, ler e agir levando em consideração a existência do outro. A empatia é uma habilidade social que é resultado de fatores emocionais, cognitivos, comportamentais e culturais. É através dela que nos mantemos vivas enquanto espécie, porque antes de tudo, a violência é estúpida, covarde e burra, porque coloca em risco a nossa própria sobrevivência enquanto humanidade. Portanto, a empatia, além de ter uma base ética, é a melhor estratégias para sobrevivermos enquanto seres humanos. É através da senda da Ética do Bem Comum que a humanidade tem possibilidade de, como diria Ailton Krenak: adiar o fim do mundo. >
Portanto, a partir do momento que nós não paramos o país quando mais duas crianças são mortas de maneira tão brutal, covarde e friamente assustadora, algo dentro de cada uma de nós também, morre, padece, empalidece e murcha. Algo do nosso solo psíquico se afunda em sombra, mas nós pedimos licença e compramos pão. A vida continua. A vida continua? De que maneira ela continua quando passamos a ter em nossa tela mental e em nosso corpo aquela imagem de dois corpos de duas crianças sendo sugadas por uma máquina do garimpo ilegal? >
Era 12 de outubro. *Vitória Barreto é psicóloga.>