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Moyses Suzart
Publicado em 22 de novembro de 2025 às 05:00
A raiz indomável do fenômeno do cangaço pulsava na convicção de que era possível viver sem lei nem rei e ser feliz. Mas o último homem vivo a andar ao lado de Lampião tinha outra concepção: “Nem feliz, nem triste. Apenas viver”. E foi com esta filosofia que o baiano Mané Gaipó, o último cangaceiro vivo, viveu seus 116 anos até ser pego pela tocaia da morte, na última semana, no povoado de Caraíbas, município de Glória, no nordeste baiano. Sua morte foi tranquila, natural e longe do cenário de caos do sertão cangaceiro. Indígena Pankararé, deixou filhos, netos, bisnetos e tataranetos. Mas seu legado também cheira a pólvora. Ele era cunhado de Corisco e irmão de Dadá. >
Nascido no dia 20 de março de 1909, no povoado Baixa da Ribeira, em Macururé, Bahia, Gaipó conviveu desde cedo com as mazelas do sertão e as consequências do cangaço, que o perseguiu durante quase toda sua vida. Na verdade, toda sua família, como numa maldição, conviveu com a perseguição por conta de uma passagem na história que mudou a vida dos Ribeiro: sua irmã Dadá, na época uma garota de 13 anos, foi raptada por Corisco, estuprada e acabou entrando de vez no cangaço, como esposa do Diabo Loiro, que a raptou. >
“Dadá entra definitivamente para o Cangaço, onde se tornou uma lenda, sendo mais conhecida do que muitos cangaceiros, uma mulher com presença marcante no bando de Corisco, que era o seu marido, depois das amarguras que passaram por morte que no passado lhe causou um grande mal”, escreve Sandro Lee, no seu livro “Paulo Afonso - Histórias e roteiros do cangaço”. Mas o autor também confirma outra coisa: esta entrada rotulou toda família como bandidos. E isso custou caro para todos. >
O pai de Mané passou a ser perseguido pela polícia e apanhou bastante também. Mas o irmão de Gaipó sofreu mais. “Toda família sofreu demais, inclusive o seu irmão Pedro que apanhou da polícia, foi açoitado pelos soldados com um chicote de couro cru e foi também ferrado com um ferro quente, teve as unhas perfuradas a ponta de punhais”, conta Lee. As marcas do espancamento e das chicotadas ficaram visíveis em Pedro, principalmente no rosto. Então, Pedro seguiu um fluxo rotineiro no fenômeno do Cangaço. Segundo Frederico Pernambucano, historiador conceituado sobre o tema, o cangaceiro se formava, na sua maioria, em três hipóteses: por vingança, por vocação ou por fuga. >
“O cangaço tinha sido um meio de vida, uma ‘profissão’ declarada, notadamente para o proletariado e o pequeno proprietário de terras; instrumento de vingança, para os membros de famílias mais remediadas ou mesmo senhoriais, e refúgio nômade para perseguidos de toda ordem, da Justiça ou da vingança privada dos coronéis”, conta Pernambucano, autor do livro Guerreiros do Sol, que foi inspiração para a série de mesmo nome da GloboPlay. >
E foi assim que João Pedro Ribeiro virou o cangaceiro Avião, o primeiro irmão de Dadá a entrar no cangaço. Contudo, não durou muito tempo. Enquanto limpava sua pistola, a mesma disparou acidentalmente e o atingiu seriamente na perna. Imagine você sem recursos, no meio da caatinga. O ferimento infeccionou e ele acabou morrendo. Enquanto isso, Mané Gaipó permanecia com seu pai cuidando do gado. Mas foi por pouco tempo, pois ele recebeu um chamado do próprio Lampião.>
Em meados de 1929, enquanto recolhia o gado da família com outro irmão, Gaipó deu de cara com Virgulino Ferreira e seu bando. Neste momento, sabendo se tratar de outro maninho de Dadá e já cunhado de Corisco, Lampião o ‘convidou’ para entrar no bando. Vale lembrar que era bem complicado dizer 'não' para o capitão. >
Manoel Ribeiro da Silva, vulgo Gaipó, acabou entrando no cangaço, o terceiro da família. A partir daí, a família passou a ser perseguida ainda mais pelas volantes pois, naquela altura, Dadá já era conhecida em todo Nordeste, também pela sua habilidade tática. Um parêntese importante: inclusive ela era uma das únicas mulheres do bando que combatiam. Sua neta, Indaiá, disse ao CORREIO que Maria Bonita era uma espécie de princesa do cangaço, mas Dadá era combatente das melhores. Outra atribuição histórica a Dadá é o fato dela ter sido, segundo alguns historiadores, a primeira a usar a vestimenta com couro marrom, justamente para camuflagem no meio do cangaço. Antes, a maioria das vestimentas eram azuis e coloridas. >
Voltemos a Gaipó. Ou melhor, as consequências dele ter entrado no bando, mesmo que forçado. “O pai foi espancado, foi preso e mandado pra Salvador. Largaram ele pela estação da Calçada. Uma das irmãs morreu com ferro quente no rosto. A outra foi perseguida pelo resto da vida e morreu fugindo”, conta Sandro, que conviveu com Gaipó desde 2011 até sua morte. Falaremos deste encontro mais adiante. >
Por meses, Mané conviveu com Lampião e seu bando, andando lado a lado com Virgulino, mesmo sabendo que não iria se adaptar. Até que, quando o bando se preparava para atacar uma fazenda, Gaipó resolveu agir. Chegou a contar para alguns amigos da tropa, que o alertaram ser uma má ideia. Mesmo assim fez. Ele disse a Lampião que estava apertado e precisava “cagar”. Aproveitou a oportunidade e se picou caatinga adentro. Foi sua despedida do bando, mas o cangaço continuou lhe perseguindo, pois Virgulino, quando soube da fuga, jurou Mané de morte. Tomou aquilo como uma traição das piores. Olha a sinuca de bico de Manoel: era procurado pela polícia e pelo próprio Lampião. >
Jurado de morte para todo lado, a vida de Mané foi fugir. Indígena, conseguiu refúgio com parentes na Ilha da Missão, em Pernambuco. Depois, retornou à Bahia e ficou escondido em Santo Antônio da Glória. Sua vida ficou menos pior quando sua irmã Dadá decidiu enfrentar Lampião pelo irmão. >
“Mané me contou esta história. Disse que Lampião chegou até Dadá se queixando de Mané. ‘Que cabra ruim seu irmão, Dadá, nos deixou’. Até que ela resolveu peitar o capitão. ‘Você já me tem no bando, na situação que foi com o Corisco, já perdi um irmão, você quer acabar com minha família, Virgulino?’ Lampião respeitava muito Dadá e acabou desistindo de perseguir Mané”, conta Sandro, que ouviu a história do próprio e tem tudo gravado. >
Livre dos cangaceiros, mas não das volantes. A paz não era uma opção. Acabou pego pela polícia e apanhou muito. Apanhou tanto na cabeça que, como consequência, ficou cego. Mané disse que sofria ameaças constantes de que seria castrado e tudo. Chegou a cumprir pena em Salvador por dois anos, até ser solto. Contudo, continuou perseguido. “Depois de 1942, já solto, precisou ficar escondido e se mudando constantemente. Acredite: em 1972, a polícia ainda perturbava ele. É complicado imaginar mas, até já velho, batia polícia na porta dele”, completa Sandro. >
Imagine que uma testemunha ocular e toda esta história continuaram escondidas durante décadas. Após longas pesquisas, o historiador Sandro Lee chegou até ele e descobriu a lenda do cangaço, o santo graal da caatinga, já com mais de 90 anos. Só assim sua história pôde finalmente ser revelada. “Essa história ficou guardada por mais de noventa anos. Ele estava escondido, sumido na história, até eu o encontrar em 2011”, lembra.>
Sandro lembra que foi difícil convencer Mané a falar. “Quando finalmente cheguei até ele, fui escorraçado pelos parentes e por ele, que não queria nem tocar no assunto do cangaço. Era uma pessoa que ninguém lembrava, ninguém conhecia, até eu conhecer. A filha dele me botava pra correr de lá, dizia que não podia falar disso de jeito nenhum. Depois de um ano insistindo, consegui. Aí ele foi contando e tudo o que ele contava eu gravava. Ficamos amigos”, conta Lee, que pretende montar um documentário com este material. São horas de gravações, a maioria ainda com o formato VHF. >
A descoberta também rendeu encontros. Mané chegou a visitar algumas vezes Dadá, que já estava solta e morava em Salvador, no bairro de Mussurunga. Após a morte de sua irmã, no final da década de 90, o contato com a família na capital ficou quase nulo, até um quadro mudar tudo. >
Na casa de Mané, tinha na parede uma cena de casamento, que era a neta de Dadá, Indaiá, que mora até hoje em Salvador. “Resolvi tirar uma foto daquilo e postei na minha rede social. Não é que apareceu justamente a neta de Dadá? Perguntando o motivo de eu ter aquela foto, bem desconfiada de como eu tinha aquela foto tão pessoal. Eu disse que estava na casa do tio/avô dela. Custou pra ela acreditar”, lembra. >
Só então foi promovido o encontro entre a neta de Dadá e os parentes de seu tio/avô. Indaiá passou a visitá-lo constantemente. Ela conta que Mané chegou a ir ao seu casamento, por isso o quadro com a foto estava com ele, pois havia ganhado de Dadá. “Era uma pessoa maravilhosa, de um coração enorme. Visitei ele este ano, no seu aniversário de 116 anos. Já estava bem debilitado, mas me reconheceu. O quadro do casamento continua lá na parede”, conta Indaiá.>
A partir de toda esta movimentação, Manoel se tornou o morador mais ilustre de Glória. O último cangaceiro vivo passou a ser respeitado na cidade e ganhou um adjetivo que antecede seu nome. Ele passou a ser o Lendário Mané Gaipó e, mesmo com mais de cem anos, cada giro completo no sol era uma festa no seu povoado. Em março deste ano, ao completar 116, a localidade parou para comemorar, como um marco histórico. E era. >
“Mané Gaipó é um símbolo de resistência, sabedoria e força. Sua trajetória representa a riqueza da cultura indígena e a história do nosso povo. Celebrar sua vida é reconhecer o legado de um homem que atravessou gerações mantendo nossas tradições e valores vivos”, disse a prefeita da cidade, Vilma Negromonte, em discurso no dia do aniversário dele. >
A prefeitura então passou a buscar o reconhecimento de Gaipó não apenas como o último cangaceiro vivo, mas também como o homem mais velho do mundo, já que o reconhecido é um cearense de 113 anos. Infelizmente não deu tempo. Ele acabou nos deixando no último sábado (15), por causas naturais. Cansou de lutar e resolveu descansar de um mundo que o castigou, mas se manteve vivo e com a cabeça no lugar. Seu enterro foi cercado de família e amigos, mas de forma simples e sem holofotes. >
Gaipó fecha um ciclo de testemunhas vivas de um fenômeno que moldou o Nordeste e que se tornou um símbolo, independentemente de rótulos entre mocinhos e bandidos. A última mulher viva, que esteve inclusive no fatídico dia em Angicos, no dia em que Lampião e Maria Bonita foram mortos, morreu em 2022, aos 99 anos. Na época, Gaipó já tinha 113. >
“A ex-cangaceira Dulce integrou o cangaço em seus momentos finais, pouco antes da morte de Lampião. Sergipana, foi levada ao bando pelo cangaceiro Criança. Dulce foi, ao que tudo indica, a última sobrevivente. Ela esteve presente na grota do Angico quando Lampião e outros dez integrantes do grupo foram mortos. Sua morte representou mais uma perda irreparável para a memória histórica do cangaço, assim como ocorreu recentemente com o falecimento de seu Manoel, irmão da cangaceira Dadá”, explica o historiador Robério Santos. Dulce se entregou e foi poupada do massacre. >
Se não existe ninguém mais vivo para contar a história, que ao menos esta passagem crucial do nordeste permaneça pulsando em livros, memórias e na literatura de cordel. O cangaço foi e será sempre muito mais do que a figura midiática de Lampião. Será a batalha individual de cada nordestino pela sobrevivência, que muda contextos, muda o tempo, mas não pode ser esquecida. O fenômeno do cangaço foi, sem dúvida, um movimento social.>
“Na esteira do Descobrimento, houve um Brasil que não se dobrou aos valores trazidos pelo colonizador europeu e se manteve insubmisso. Pontilhou nossa história de períodos de violência, nas espécies bem conhecidas do levante indígena, do quilombo negro e da revolta social. Na linha contínua, entroncada na mesma postura de irredentismo, temos o cangaço, convicto que se pode viver sem lei nem rei e ser feliz”, completa Frederico Pernambucano. Não há tema brasileiro mais ilustre que o cangaço. Descanse em paz, Mané Gaipó!>
Mané Gaipó, o último cangaceiro vivo