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Thais Borges
Publicado em 22 de novembro de 2025 às 05:00
A aprovação no concurso do Instituto Federal Baiano (If Baiano) foi uma realização pessoal para a psicóloga Zildete Andrade, 45 anos. Não se tratava apenas de se tornar servidora federal - e, portanto, uma servidora Técnico-Administrativa em Educação (TAE) - mas de unir duas de suas paixões: a Psicologia e a Educação. “O concurso veio como um sonho que eu tinha construído para mim”, lembra. >
Hildete foi aprovada em 2011 e, mesmo antes disso, já tinha vontade de fazer mestrado e doutorado. Como não conseguiu a aprovação de imediato e nem tinha como pagar por uma formação particular, a vontade de continuar os estudos com a pós-graduação teve que esperar até 2017, quando entrou no mestrado em Direito. Desde 2023, cursa doutorado em Família na Sociedade Contemporânea, na Universidade Católica do Salvador (Ucsal). >
Assim, Hildete faz parte de um grupo de TAEs que, já doutores ou em vias de conquistar o doutorado, têm direito, por lei, ao Incentivo à Qualificação (IQ), um benefício financeiro para os servidores que têm formação maior do que a exigida pelo cargo. >
Conheça as instituições federais de ensino superior da Bahia, onde trabalham os TAEs
"Não vou mentir que esse acréscimo não é importante dentro de uma das carreiras mais desprezadas no serviço federal. Mesmo para psicólogos, os psicólogos do Judiciário, por exemplo, com a mesma graduação que eu, estão ganhando muito mais. Então, isso é bem significativo para continuar", diz ela. A remuneração de um analista judiciário de Psicologia varia de acordo com o órgão, mas nos Tribunais Regionais Federais, por exemplo, começa em mais de R$ 13 mil. Entre os TAEs, o salário inicial fica em torno de R$ 5 mil. Com doutorado, há um acréscimo de 75% do valor. >
O que o grupo de TAEs doutores não esperava era que a categoria fosse excluída justamente de uma nova proposta pensada para valorizar servidores por meio de saberes não instituídos e das competências desenvolvidas: o chamado Reconhecimento de Saberes e Competências (RSC). A implementação deste instrumento está no centro de uma polêmica envolvendo servidores, entidades representativas e os Ministérios da Gestão e Inovação em Serviços Públicos (MGI) e da Educação (MEC). >
Equivalência>
No início, a criação do RSC parecia uma vitória geral. Tinha sido uma das reivindicações da greve dos TAEs em 2024 e vinha sendo alvo de discussão em grupos de trabalho com integrantes do governo. A data limite para implantar o RSC é abril de 2026. No entanto, desde o ano passado, as discussões começaram a dar indícios de caminhos diferentes. >
Até que, em junho deste ano, um relatório enviado pelo MEC ao MGI confirmou a mudança: os servidores doutores não seriam contemplados pelo incremento salarial. De acordo com a nota técnica, seriam seis níveis de RSC, do 1 ao 6, contemplado desde fundamental incompleto até mestrado como pré-requisitos. No caso do mestrado, o valor seria de 75% do Incentivo à Qualificação de doutorado. >
“A representação do Reconhecimento de Saberes e Competências na carreira Técnico-Administrativa em Educação não representa a criação de um novo benefício, mas sim um aprimoramento de um mecanismo já existente, o Incentivo à Qualificação, promovendo o reconhecimento das experiências e competências adquiridas ao longo da trajetória profissional dos servidores. A adoção dessa medida fortalece a valorização da carreira TAE, incentiva o desenvolvimento contínuo dos servidores e se alinha às diretrizes de modernização da Administração Pública e o fortalecimento das instituições federais”, diz o relatório. >
Entre as possíveis competências, estão a atuação em comissões e em processos licitatórios, além de elaboração de editais e notas técnicas, participação em projetos, publicação de livro, tempo de serviço, certificado de proficiência em Libras ou língua estrangeira e até elogio profissional. O rol de saberes da proposta a qual o CORREIO teve acesso conta com 89 itens. Cada um tem uma determinada pontuação, que será somada na nota final. >
Mas a avaliação de muitos TAEs é de que a interpretação tem problemas. “No governo, há uma visão distorcida e equivocada do que é RSC”, diz a pedagoga Loiva Chansis, uma das coordenadoras gerais da Federação de Sindicatos de Trabalhadores Técnico-administrativos em instituições de ensino superior (Fasubra). >
“Foi feita apenas uma equivalência ao IQ. Na visão deles, quem faz doutorado não precisa mais ter conhecimento. Tanto o trabalhador que chegou ao doutorado quanto o que tem nível fundamental têm seu conhecimento. Nós vivemos numa academia, a gente faz pesquisa. Na visão deles, a gente não aprende mais”, acrescenta ela, que é doutora em Educação e servidora da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). >
A Fasubra chegou a enviar uma resposta propondo a criação do RSC-7, que contemplaria os doutores e representaria um percentual de 10% maior que os mestres - ou seja, 85% do IQ de doutores. “É uma visão equivocada. Não quero nem dizer que é economicista porque não chegamos nem a 7% de doutores entre os TAEs de todas as universidades do país. São poucos doutores e chegar ao RSC 7 não seria automático. A pessoa tem que ter pontuações mais exigentes. Não é todo doutor que vai chegar ao RSC-7”. >
Debate>
A concepção do RSC para a carreira TAE não teria partido do MEC, segundo o administrador Daniel Oliveira, que é doutor em Administração e servidor do Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG). Ele é um dos fundadores do coletivo TAES Doutores e Acadêmicos, criado no ano passado e que já conta com cerca de quatro mil membros. Hoje, o coletivo é uma das vozes mais engajadas na mobilização nacional por essa inclusão dos doutores. >
Daniel se diz preocupado com o futuro da carreira. Para ele, é uma incoerência criar um benefício que considera discriminatório e que desincentiva a qualificação em uma carreira de educação, ciência e tecnologia. “Na prática, essa proposta significa o congelamento da remuneração dos TAEs doutores e a elevação dos que possuem menor nível de qualificação. Isso não é sustentável. A carreira da educação precisa de servidores cada vez mais qualificados e com aptidão para atuarem em ambientes acadêmicos”, afirma.>
De acordo com ele, em fevereiro de 2024, o Sindicato Nacional dos Servidores Federais da Educação Básica, Profissional e Tecnológica (Sinasefe) teria enviado ao MGI uma proposta de RSC baseada em outra proposta, feita pelo Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (Conif) entre 2014 e 2015. >
"Não houve o devido debate nas bases sindicais sobre a proposta. Tudo foi feito de forma açodada e percebemos o motivo depois. Se não me engano, quando o Conif elaborou a proposta, havia menos de 500 TAEs doutores em todo o Brasil. Em 2024 já eram mais de 11 mil TAEs com o título de doutor e milhares de doutorandos, pois o governo federal ampliou significativamente a oferta dos cursos de pós-graduação stricto sensu", diz.>
A proposta final dessa minuta foi assinada pela Comissão Nacional de Supervisão do Plano de Carreira dos Cargos Técnico-Administrativos em Educação (CNSC) do MEC, que conta com lideranças sindicais e representantes do órgão. "Acredito que o MEC nem tenha percebido que a minuta que assinou e enviou ao MGI fere princípios legais e constitucionais, principalmente a isonomia. Isso porque a exclusão ocorre no texto de forma velada. Ao não prever uma faixa de RSC para servidores doutores, isso abre caminho para que o benefício se torne um trampolim para a maior remuneração sem que o servidor tenha que ler ao menos uma orelha de livro além do currículo que já possui". >
Filho de um operário e de uma dona de casa que não terminaram o ensino fundamental, Daniel ingressou na carreira federal em educação em 2008 com um cargo de nível médio. Hoje doutor, ele atua como gestor de contratos administrativos no IFMG. Daniel afirma que o doutorado fortaleceu habilidades que precisa usar todos os dias, como produzir pareceres, fazer análise de dados, avaliar cenários e fazer planejamento. "A qualificação em nível avançado não confere apenas ‘um título’, mas amplia muito o modo como o servidor enxerga processos, identifica riscos, propõe soluções e aprimora rotinas", defende.>
Bahia >
Doutorando em Sociologia, o jornalista Renato Luz também foi o primeiro de sua família a entrar numa graduação. Ele é jornalista concursado da Universidade Federal da Bahia (Ufba), em Vitória da Conquista, depois de ter sido transferido da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), onde atuou por oito anos. >
Ele considera a proposta atual do RSC injusta. "O que o MEC está fazendo é criar um jabuti. Qualquer benefício tem que ser para todo mundo. Mas o governo quer dividir a gente, jogar doutor contra graduado. A gente não está lutando para tirar a gratificação de ninguém, mas para que os saberes que a gente tem sejam reconhecidos também". >
Para Renato, se a medida for aprovada dessa forma, vai ser uma penalização dos servidores mais qualificados. "Minha vida toda é dedicada à universidade. Não acho justo que os benefícios sejam dados de forma seletiva. A proposta do RSC fala, por exemplo, em gratificação para quem ocupa cargo de direção. Vai premiar, mais uma vez, pessoas próximas das reitorias? É preciso que a gratificação por saberes e competências seja mais ampla e não para contemplar grupinhos". >
Em todo o Brasil, são mais de 130 mil TAEs, segundo dados de 2023. A reportagem não conseguiu contato com a Assufba, sindicato que representa a categoria na Bahia, para saber quantos estão especificamente no estado. >
Uma delas é a engenheira civil Lívia Berti, que foi aprovada no concurso da Ufba para o cargo em 2008. Também arquiteta e urbanista, ela foi transferida para a Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) em 2014, porque queria sair de Salvador e voltar à região Sul, onde sua família vive. Naquela época, os filhos tinham 6 e 4 anos. Ao chegar na UFSB, conseguiu, com ajuda da família concluir a especialização, o mestrado e o doutorado. "Sempre tive vontade de fazer doutorado, mas o baixo salário dos técnicos administrativos em educação nos direciona a buscar qualificação para melhoria do salário", avalia. >
Com o doutorado em Desenvolvimento e Meio Ambiente e foco de pesquisa sobre sustentabilidade na construção civil, Lívia acredita ter adquirido um conhecimento que se manifesta em projetos e obras mais sustentáveis, enquanto diretora de Infraestrutura na UFSB. >
"Considerando que o RSC é uma busca de corrigir salários absurdamente baixos, o que se agrava no caso de engenheiros e arquitetos. Além de todas as responsabilidades dos demais técnicos, ainda têm a responsabilidade técnica e não ganham nada mais por isso. Foi frustrante observar que os doutores ficaram de fora da proposta", admite. >
A psicóloga Hildete Andrade, que faz doutorado em Família na Sociedade Contemporânea, trabalha na reitoria do If Baiano. Com uma pesquisa sobre os sofrimentos da juventude nos estudos, ela conta que usa o incremento salarial que recebeu com o mestrado para financiar o doutorado. >
"O RSC seria uma forma de justiça frente à desvalorização de outras carreiras, dentro de uma carreira tão sofrida e com crescimento tão lento. Os pontos dele são ligados à dedicação, à carreira e à participação. Tudo isso tem um custo psíquico e uma carga de trabalho que atrapalha os estudos. Mas é uma forma de ajudar quem quer, de fato, crescer e as pessoas que estão engajadas com o projeto de educação do país". >
O MEC e o MGI foram procurados na última semana. O MEC orientou que a reportagem buscasse mais informações com o MGI. Este, por sua vez, não respondeu aos contatos até o início da tarde desta sexta-feira. O Sinasefe e a Assufba também foram procurados com um pedido de entrevista, mas não houve retorno. >