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Moyses Suzart
Publicado em 9 de novembro de 2025 às 05:00
Parece até implicância de baiano com o restante do país, mas não é. Tentamos ser humildes, mas o protagonismo do estado atravessa as leis da lógica e parece que temos a mania de ser primeiro em tudo. Primeira capital, primeira missa, primeiro carnaval e primeiro índio abatido também. E foi na Bahia que também nasceu a Medicina Legal no Brasil. Bem no Centro Histórico, na Faculdade de Medicina da Ufba, com seu apogeu a partir de 1895, há exatos 130 anos, com Nina Rodrigues, que dá nome ao Instituto Médico Legal da capital, que recentemente modernizou a divisão mais importante para a investigação forense: Anatomia Patológica. >
Este setor, que passou a ser bem conhecido após as séries criminais norte-americanas, como o CSI (Crime Scene Investigation), é a parte mais importante na investigação de algum crime contra a vida, determinando a causa da morte. Tem, inclusive, mais valor probatório que o próprio inquérito policial, que é um procedimento administrativo pré-processual e pode, inclusive, ser dispensado pelo juiz que vai julgar o crime. Ao contrário do que os policiais e peritos criminais fazem, pois são cruciais e obrigatórios num processo. E tudo por conta de um nome bem conhecido: ciência. >
Juliana Ribeiro de Freitas, coordenadora do setor, lembra que toda investigação criminal começa e termina na produção da prova pericial. É o trabalho que dá base para a Justiça funcionar, que traduz o que aconteceu em fatos e evidências. “Qualquer crime que ocorra, qualquer situação que ocorra, é necessário que se prove, é necessário apresentar a prova. E quem faz isso é o perito, seja o perito médico legista, seja o perito criminal. Nós trabalhamos com a produção da prova pericial”, explica Juliana.>
Na prática, o IML é o ponto onde ciência e o código penal se encontram. “Quando um corpo chega ao Instituto, ele precisa ser investigado. Será que essa pessoa foi intoxicada, foi envenenada antes de sair de casa, ou teve um AVC e caiu no ponto de ônibus? O estudo da necrópsia busca essas respostas. É um trabalho técnico, mas também de respeito às famílias, que esperam entender porque seu parente faleceu”, diz. >
Quando um corpo que sofreu uma morte violenta chega ao IML, você já passou para pensar o que acontece com ele? Ao ver uma pessoa que morreu num acidente, por exemplo, um exame no coração pode constatar se ele faleceu por conta do acidente ou teve uma parada cardíaca que trouxe o acidente como consequência. É aí que se diferencia a ciência legal do senso comum. É dentro do laboratório do IML que a causa da morte será constatada. Por isso, muitas vezes o corpo não é liberado no tempo que a família precisa. Acaba sendo um jogo entre luto e celeridade na investigação. >
“Para a família é muito penoso essa espera de perder um parente que está no IML. Precisamos dar celeridade sem perder a qualidade da perícia. Precisamos dar uma resposta, por que o seu familiar faleceu? Se foi uma causa natural ou não. Se foi uma causa violenta, a gente consegue identificar se alguém envenenou essa pessoa, ou o que, de fato, aconteceu”, conta Juliana. >
De forma resumida, a perícia acaba se dividindo em dois, na área externa e interna. No lado de fora, há a investigação e coletas na cena do crime, além do recolhimento do corpo. Dentro do IML, acontece a outra fase, laboratorial, com médicos legistas. É examinado o corpo da vítima, incluindo pessoas vivas - principalmente em casos de crimes sexuais. Atualmente, o local recebe, em média, 120 perícias por mês. Em outras palavras, são corpos que sofreram algum tipo de morte violenta. É bom reforçar que é a média, mas tem picos maiores. De cada corpo desse o setor extrai, aproximadamente, cinco amostras entre tecidos e órgãos que serão examinados e guardados também, pois ficam registrados caso a justiça queira para investigação ou processos. >
Voltemos ao lado histórico. A reforma da unidade, entregue na última segunda-feira, devolve à Bahia um papel de vanguarda que acompanha a história da ciência forense no país desde o final do século XIX. Ali, entre microscópios e lâminas, nasceu a estrutura que inspirou a criação de institutos em outras partes do Brasil, incluindo o fundado pelo também baiano Oscar Freire em São Paulo - ele era discípulo de Nina Rodrigues. A nova fase do IML Nina Rodrigues reafirma a força de uma tradição que combina técnica, ética e compromisso público com a verdade. A nova estrutura, segundo Juliana, vai permitir mais agilidade sem perda de qualidade, garantindo que o laudo final chegue com precisão e rapidez, acelerando o fluxo de demandas investigativas.>
A médica destaca ainda que a Bahia teve papel essencial na nacionalização da medicina legal. “Houve visitas à Europa, à Espanha, Portugal, Alemanha e Itália, onde se fazia medicina legal. A Faculdade de Medicina, junto com o Estado da Bahia, mandou um professor, Virgílio da Másio, para ver o que era feito lá. Quando ele voltou, trouxe um relatório. E muito do que fazemos até hoje vem dessa experiência. A Bahia teve a primeira estrutura de ensino prático de perícia e foi pioneira ao separar os exames em pessoas vivas e em mortos”, destaca.>
Nina Rodrigues trouxe a prática do ensino pericial com pessoas reais, dentro dos princípios éticos da época, mesmo que alguns já tenham sido desconstruídos, principalmente os de aspecto racial. No aspecto da perícia e da medicina legal, mesmo com este entrave na sua história, ele marcou a medicina legal brasileira ao unir pesquisa e ensino que nacionalizou o conceito para as particularidades brasileiras. A Bahia foi e continua sendo vanguarda também nesta ciência. >
Mais de um século depois, essa herança se renova com a modernização do IML Nina Rodrigues. O investimento no setor de Anatomia Patológica simboliza mais do que a melhoria de um serviço: representa o fortalecimento de uma polícia científica que investiga com base na prova, e não apenas na suspeita. Num contexto em que a imagem das forças de segurança é frequentemente associada à violência, esse avanço mostra uma outra face da polícia, a que pensa, pesquisa e usa a ciência para servir à sociedade.>
“A gente precisa pensar em um policiamento efetivo, e isso passa por ter uma polícia civil que consiga investigar bem, com o suporte de um departamento técnico forte, equipado e independente. É assim que se constrói uma segurança pública de verdade, baseada em inteligência, integração e investimento”, resume Juliana.>
Reforma da Coordenação de Anatomia Patológica do IML