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Thais Borges
Publicado em 9 de novembro de 2025 às 05:00
A Catedral de Notre-Dame, em Paris, demorou mais de 180 anos para ser totalmente construída, no auge de sua arquitetura gótica. Assim, não é de se surpreender que sua prima distante - a Notre-Dame baiana - levasse quase seis décadas para ser finalizada (essa, por sua vez, com a arquitetura neogótica). >
Se você não fez a conexão imediata, é porque talvez não conheça o Santuário Senhor dos Passos, a igreja mais icônica de Feira de Santana e aquela que é considerada uma das mais bonitas do estado. Mas para manter os traços de uma estrutura arquitetônica tão marcante, os cuidados também precisam ser diferenciados. Nas obras de restauro da fachada e das paredes do templo, as equipes técnicas estão usando frascos de "soro", como os de hospital, para liberar gota a gota uma resina acrílica diluída a 12%. Assim, o material está sendo lentamente “injetado” na estrutura da fachada. >
Esse cuidado todo é necessário tanto pela importância do santuário, que é tombado pelo Instituto Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac), quanto pela forma como foi construído. "O sistema de gotejamento já é muito utilizado em restauração. Quando você tem uma superfície que precisa ser preservada e não dá para substituir, tem o gotejamento (como opção). Na igreja, temos uma situação atípica pelo volume da demanda de gotejamento, porque normalmente a gente não encontra essa necessidade de preservar a superfície", explica o restaurador e artista plástico Daniel Mota, um dos responsáveis pelo projeto. >
Restauração do Santuário Senhor dos Passos, igreja neogótica em Feira de Santana
As obras tiveram início em maio deste ano e estão sendo executadas pela Companhia de Desenvolvimento Urbano da Bahia (Conder). O valor investido é de R$1,53 milhão, pelo Ipac. A previsão é de que sejam finalizadas até janeiro. >
A igreja não apenas tem estilo neogótico, como também conta com um material na fachada de revestimento com pedaços de vidro, como lembra o padre Júlio César Santa Bárbara, pároco local. "Isso dá uma característica muito especial. Inclusive, várias igrejas têm estruturas neogóticas, mas não com esse material", explica. >
Estrutura>
A necessidade da reforma veio a partir de uma queixa: a queda de um pináculo, um elemento decorativo que indica o ponto mais alto da torre, em janeiro de 2024. Como a igreja é tombada, qualquer reforma precisaria de um laudo do Ipac. >
Segundo a engenheira Jamile Bastos, fiscal da obra pela Conder, o desprendimento do pináculo foi causado porque o laço que acoplava a estrutura era muito curto. "Só tinha 12 cm de ancoramento e eles já tinham sido amarrados com cabo de aço para não despencar o restante. Fizemos a verificação de toda a estrutura e tiramos o restante dos pináculos que estavam degradados", explica ela, referindo-se ao processo de reestruturação com fibra de carbono. >
Há três materiais principais na obra: além da fibra de carbono, a equipe tem usado resina acrílica e resina epóxi. Apesar dos itens não serem tão convencionais, usar essas tecnologias mais recentes é uma estratégia para não descaracterizar a igreja. Isso porque, ao chegar ao santuário, os técnicos e restauradores perceberam que todo o revestimento da igreja estava descolando de sua estrutura - e isso está diretamente ligado aos 58 anos necessários para que sua construção fosse concluída. >
"A igreja começou a ser feita com areia e cal, depois foi introduzido o cimento. Como são materiais diferentes, também são dilatações diferentes pelas intempéries do tempo. Assim, todo o revestimento ficou separado da estrutura. É como se uma pedra de piso estivesse flutuante", explica Jamile. >
Essa situação é considerada atípica porque o revestimento externo ficou preservado. "A patologia degradou o material interno do reboco", diz o restaurador Daniel Mota. Daí a necessidade de criar um mecanismo de preservação do revestimento. "A característica principal da igreja é esse revestimento com vidro, que é uma ideia marcante da fachada. A gente precisa, então, fazer com que esse revestimento permaneça", completa. >
A mudança de tecnologias na construção - primeiro, usava-se técnicas que remontam ao século 18; no fim, já era um trabalho com o cimento, que apesar de datar do século 19, passou a ser mais acessível depois - trouxe certa incompatibilidade. "Isso era impossível de ser previsto no tempo da construção", diz Mota. >
O processo>
O primeiro passo foi fazer a lavagem de toda a igreja - algumas partes estavam escurecidas, devido à localização. O santuário fica no centro da cidade, em uma região movimentada, comercial e com grande fluxo de veículos. Assim, o vidro, que estava escondido, ressaiu. >
A segunda etapa é o tratamento que inclui o gotejamento. Primeiro, é preciso fazer um pequeno furo na parede e aplicar a resina acrílica pastosa para que o revestimento seja aderido. Além disso, há o gotejamento em si: a mesma resina é diluída em água a 12% com os aparelhos de soro. O material é aplicado em gotas, de forma lenta, para não saturar a região. O material vai, assim, estabilizar a estrutura e garantir que ela não volte a ser desagregada. >
"Em cada furo, a gente mapeia o tanto de líquido que era injetado. Onde tinha mais líquido, a gente entrava com o tratamento da segunda etapa, que é a aplicação da resina pastosa", acrescenta a engenheira Jamile Bastos. Uma vez com a resina pastosa, a equipe fez o coroamento na platibanda (a borda superior da edificação). Partes que estavam degradadas foram consolidadas com fibra de carbono. >
Agora, eles estão prestes a começar o revestimento com vidro. "É tipo uma argamassa um pouco elástica para trabalhar toda a estrutura e não haver desplacamento, nem fissuras. Por último, temos uma aplicação de resina que vai proteger e impermeabilizar toda a estrutura". >
Das quatro fachadas, a do lado sul já foi passou pelo gotejamento. Nesta semana, o tratamento foi iniciado na fachada norte. Para a fiscal de obras da Conder, trabalhar no projeto foi um desafio. >
"Estava acostumada com obra civil convencional. A gente encara como um desafio e uma oportunidade trabalhar com essa tecnologia. Para mim, foi uma oportunidade ímpar. A gente está tendo a responsabilidade cultural de preservar tudo existente. A gente não quer refazer, mas preservar e conservar", analisa. >
Além disso, a igreja tem muitos elementos decorativos em balanço, como os pináculos. A estrutura de todos eles está sendo refeita com materiais mais novos, a exemplo da fibra de carbono, para que não haja mais risco de queda. "Essa é uma obra encantadora para mim, porque os desafios são ter que achar a tecnologia adequada para o momento da igreja. Uns 10, 15 anos atrás, elas já existiam, mas não eram tão acessíveis. Hoje, a gente consegue utilizar as tecnologias mais avançadas para casos específicos", diz Daniel Mota. >
Comunidade>
O atual santuário foi o sucessor de uma capela pequena dedicada ao Senhor dos Passos e inaugurada em 1852, erguida pelo Comendador Felipe Pedreira de Cerqueira. A antiga capela chegou a ser visitada pelo então imperador D. Pedro II, em 1859. Ela ficava ao lado de um cemitério, mas entrou em ruínas no início do século 20. Ao mesmo tempo, a paisagem ia mudando. Um dos autores do livro ‘Memórias: Igreja Senhor dos Passos’, Carlos Brito conta que, em 1917, a prefeitura autorizou a desapropriação de casas para a construção daquela que viria a ser a Avenida Senhor dos Passos. >
Em 15 de outubro de 1921, houve a cerimônia de instalação da pedra fundamental da atual igreja, com missa campal e grande participação popular, segundo ele. O projeto era assinado por Manoel Accioly Ferreira da Silva, responsável por outros prédios da época, como a sede da prefeitura e o Mercado Municipal. Em 1936, após 15 anos de construção, a primeira etapa do santuário - sem a torre - foi inaugurada. >
Foi apenas em 1951 que as obras foram retomadas, sob a gestão do padre Aderbal Saback. Nessa época, a torre de 35 metros e os vitrais dos apóstolos foram instalados. A inauguração de todo o templo concluído veio apenas em 1979. O Santuário Senhor dos Passos é considerado a segunda igreja em área urbana de Feira de Santana - a primeira foi a Igreja dos Remédios, que hoje faz parte da paróquia Senhor dos Passos. >
"O grau de importância da igreja está vinculado à sua própria existência, porque hoje ela é um santuário de devoção não só para a comunidade, mas para todos aqueles que visitam nossa cidade. Ela tem um valor religioso e afetivo", diz ele, que é membro do Conselho Curador da Fundação Senhor dos Passos. >
Outras restaurações foram feitas anteriormente, como a troca do telhado em 1990 e outra em 2012. Na de 2025, durante o período de obras, o santuário continua com as atividades de missas e atividades religiosas. Para o padre Júlio César Santa Bárbara, pároco local, a comunidade tem amor especial pela igreja, inclusive para visitação. >
"No Santuário Senhor dos Passos, você consegue entender o que é a pastoral urbana. Estamos numa igreja muito querida, muito amada, no coração de Feira de Santana, mas aqui é o centro comercial. Não tem residências próximas, mas movimentamos pessoas de todas as partes da cidade", diz o padre. >
A nutricionista Daniela Barros, 45 anos, faz o trajeto do bairro da Cidade Nova até o Santuário Senhor dos Passos até três vezes na semana. Ela retornou ao templo em 2012, depois que voltou a morar em Feira de Santana. Antes disso, tinha conhecido a igreja por um evento de jovens que participou há 25 anos. >
"Estávamos procurando uma paróquia e fomos muito bem acolhidos. Onde moro tem várias igrejas mais próximas. A gente sabe que Jesus está em todas as igrejas, mas tem algo que cutuca para estarmos no santuário e nos motiva a estar lá". >
Uma igreja de arquitetura neogótica, como o Santuário Senhor dos Passos, é assim chamada porque é revivalista - ou seja, tenta reviver as características do estilo gótico, como a Catedral de Notre-Dame, em Paris. A diferença é o período, como explica o arquiteto Johniery Almeida, professor de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Salvador (Unifacs) em Feira de Santana. >
Enquanto o gótico é uma tendência da Idade Média, o neogótico é uma corrente do século 19, em todo o mundo - ainda que a construção em Feira tenha sido no século 20. "A Igreja do Senhor do Passos representa, para o feirense, uma relação de identidade e memória. Ela marca o território o urbano, por se tratar de uma arquitetura que se distingue desse contexto em que está inserida", explica Almeida, que é doutorando em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Bahia, com foco em Conservação e Restauro.>
As características marcantes do gótico nas catedrais medievais representavam o apogeu do poder da Igreja Católica. Entre os elementos, estão arcos ogivais (pontiagudos), pináculos, rosáceas e abóbodas (na parte interna). "Esse estilo representa esse poderio em seu esplendor", acrescenta o professor. >
Na Senhor dos Passos, ainda há os vitrais que representam os 12 apóstolos, além do revestimento com vidro. Há poucas igrejas com aspectos neogóticos na Bahia, como a da Lapinha e das Sacramentinas, em Salvador. >
"Mas a do Senhor dos Passos tem um acabamento que imita a pátina. O gótico é caracterizado especialmente por igrejas mais escurecidas, por causa dos materiais aplicados na construção. Na Senhor dos Passos, eles usam uma mistura de argamassa com vidro que dá esse aspecto mais escuro à fachada e, por isso, a gente consegue relacionar mais com as igrejas da Europa". De acordo com ele, essa mistura foi uma solução técnica encontrada para dar esse acabamento com textura de pedra aparente. >
O restauro feito agora no Santuário Senhor dos Passos pretende deixar o registro do que está sendo utilizado no revestimento em 2025, assim como há indicativos das outras restaurações no prédio, segundo o restaurador Daniel Mota. "Não pode retirar os registros dos danos causados pelo tempo e deixar toda original. Isso cria um falso histórico", explica. >