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Ejiao: entenda como a produção de um remédio milenar pode ser a causa da extinção dos jumentos

População de jumentos caiu pelo menos 94% nos últimos 30 anos, com maior avanço desde a autorização do abate no Brasil, em 2016

  • Foto do(a) author(a) Thais Borges
  • Thais Borges

Publicado em 19 de julho de 2025 às 05:00

Eijao, remédio da medicina tradicional chinesa produzido com colágeno da pele de jumentos
Eijao, remédio da medicina tradicional chinesa produzido com colágeno da pele de jumentos Crédito: Shutterstock

A gelatina de tom predominantemente amarronzado pode até parecer uma guloseima familiar. Mas a produção do ejiao - um popular remédio da Medicina Tradicional Chinesa (MTC) feito com colágeno da pele de asnos - escancara uma cadeia tida como a principal causa da ameaça à extinção dos jumentos nordestinos.

A redução da população de jumentos na Bahia vem sendo denunciada por pesquisadores e ativistas desde 2016, quando o abate foi permitido no estado. A estimativa é de que a população de pouco mais de 1,3 milhão na década de 1990 tenha caído 94% desde então. Cientistas acreditam que o contingente de jumentos na Bahia, hoje, não passa de 78 mil (com grandes chances de ser menor do que isso).

Em meio ao que é considerado uma emergência para a preservação da espécie e a denúncias de ecocídio, há também debates sobre os riscos sanitários de zoonoses no abate, as bases de uma cultura milenar e a mudança na própria visão social a respeito dos jumentos hoje. Mas o que haveria de diferente no colágeno dos jumentos, afinal?

"A China usa o ejiao como fonte de rejuvenescimento e potência sexual há centenas de anos. Eles têm uma demanda de cinco milhões de peles por ano, aproximadamente, e não conseguem suprir isso com a produção própria deles", diz o professor Pierre Escobro, coordenador do Grupo de Pesquisa em Equídeos e Saúde Integrativa da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e um dos principais pesquisadores do tema no país.

De acordo com ele, contudo, não foram encontradas propriedades específicas do colágeno subcutâneo dos jumentos que o tornariam ideal para o ejiao. "Culturalmente, eles acreditam que tem que ser do jumento. Até fiz alguns trabalhos de levantamento sobre isso e, cientificamente, a gente não consegue comprovar qual é a propriedade milagrosa que esse colágeno tem", explica.

A MTC, como explica o farmacêutico Paulo Varanda, especialista na área, tem mesmo bases culturais. Segundo ele, os jumentos têm a maior composição da gelatina para humanos. Presidente da Associação Brasileira de Medicina Chinesa, Varanda coordena o grupo de trabalho do Conselho Federal de Farmácia (CFF) sobre MCT.

"Não tem gosto ruim, porque já é industrializado. Tem sabor adocicado e é muito usado para fortalecer o sangue e o yin, da energia yin-yang, principalmente das mulheres. A energia yin é para formar os tecidos do corpo. Melhora a pele, o sangue e o bem-estar", explica.

Jumentos nordestinos estão ameaçados de extinção no Brasil
Jumentos nordestinos estão ameaçados de extinção no Brasil Crédito: Shutterstock

Cadeia

A demanda pelo ejiao tem crescido a cada ano, de acordo com estimativas da The Donkey Sanctuary, organização global que atua em mais de 40 países pelo bem-estar de jumentos, burros e mulas. A entidade calcula que, por ano, essa indústria necessite de 5,9 milhões de peles - ou seja, do abate de 5,9 milhões de jumentos todos os anos.

IInicialmente, a produção de ejiao recorreu aos jumentos africanos - além da criação na própria China - segundo o professor Pierre Escobro, da Ufal. Até que, no ano passado, a União Africana, que reúne os 55 países do continente, aprovou a proposta de proibição do abate e da comercialização de peles de jumento. "O jumento é de origem africana, mas eles foram quase dizimados. O Egito ficou quase sem jumentos, numa pior situação do que a gente. Então, desde 2016, começam a buscar também na América Latina".

Foi em meio a esse crescimento de procura que a Bahia entrou em uma cadeia de consumo internacional. "O Brasil entra na rota porque eles conhecem a quantidade de jumentos que a gente tinha com a mecanização e os animais nas ruas, no Nordeste. Era uma oportunidade ímpar de capturar esses animais", acrescenta.

Dos três abatedouros que são habilitados no Brasil para o abate de jumentos, três ficam na Bahia. "Por uma questão de logística do agronegócio, o jumento nordestino é que tem sido abatido, dizimado. Então, os abates acontecem na Bahia, mas jumentos vêm de diversos locais do Nordeste", diz a coordenadora de campanha da The Donkey Sanctuary na América do Sul, Patrícia Tatemoto, doutora em Medicina Veterinária pela Universidade de São Paulo (USP).

Ainda de acordo com ela, nos processos movidos junto ao Ministério Público do Estado, os animais não tinham a Guia de Trânsito Animal. "Isso significa que o transporte foi clandestino. Então eles chegam sem alimentação, sem água, sem cuidados veterinários, sem assistência médico-veterinária. Eles chegam de diversas formas, mas geralmente muito debilitados".

Saúde

Atualmente, os frigoríficos habilitados para o abate na Bahia ficam em Amargosa, Simões Filho e Itapetinga. De acordo com o professor Pierre Escobro, o trânsito dos asnos não requer exames obrigatórios do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa).

"Não pedem exames de mormo, que é uma zoonose, e de anemia infecciosa, que é a Aids deles. Para um animal ser transportado, tem que ter esse exame, mas não tem qualquer controle sanitário dentro do estado. No começo, os jumentos eram capturados mesmo ou recebiam até de graça", afirma Escobro.

De acordo com ele, numa situação de coleta de sangue de um animal com mormo, por exemplo, é preciso usar equipamentos de biossegurança nível 2 para laboratórios (a exemplo de máscara, protetor facial, luvas e indumentária própria). "Funcionários de frigorífico não usam. É uma crise não só de extrativismo e extinção, mas também um problema de saúde pública sério".

Segundo especialistas, até fazendas que são registradas como criação de jumentos, na verdade, seriam como pontos de acumulação dos animais. "A gente é contra a cadeia produtiva de animais, mas o jumento sequer tem cadeia produtiva. É captura e compra, por isso estão sendo extintas", explica a advogada Gislane Brandão, coordenadora da Frente Nacional de Defesa dos Jumentos, criada em 2016.

Desde então, a Frente tem feito manifestações contra o abate, inclusive em Brasília, além de ter participado de ações para retirar jumentos de uma dessas fazendas. "A gente já tinha desobediência à Constituição Federal pelos maus tratos e agora tem danos à saúde pública e dano à Constituição pela extinção da espécie e pela falta de cadeia produtiva", acrescenta.

Hoje, Gislane diz que não é possível apontar locais onde estariam os jumentos remanescentes. "A gente imagina que estejam com comunidades (de agricultura familiar), alguns poucos nas mãos de pessoas que conseguiram salvar e talvez alguns ainda vivendo soltos. A gente não parou de receber denúncias de caminhões passando com jumentos e de que as pessoas que caçam os animais continuam em atividade", diz.

No caso da venda, ela acredita que também houve uso o contexto social para o convencimento. "Às vezes, a pessoa está ali passando fome. Tem relatos de quem vendeu um jumento por R$ 100".

Na avaliação do professor Pierre Escobro, da Ufal, é impossível atender à demanda da China. Aqui, não haveria também nenhum tipo de seleção dos animais - já foram encontrados desde jumentos com mais de 20 anos e fêmeas prenhas até filhotes de três meses de idade.

Ele acredita que não há possibilidade de existir uma produção sustentável de jumentos nordestinos para abate. "Muita gente fala do abate de equinos, que é produzido e sustentável, mas a gente não tem criação de cavalo para abate no Brasil. Já fomos o terceiro maior exportador de cavalos, mas era descarte de esporte - cavalos de polo que, quando tinham doenças, eram vendidos. Não é extrativista como os jumentos, mas é no mínimo cruel para um cavalo que jogou a vida inteira", explica.

Medicina

O ejiao é diferente do colágeno industrializado comprado no Brasil. "Esses colágenos feitos no mundo ocidental são uma substância proteica que ajuda na sustentação. No caso da gelatina de burro, tem uma melhor função no corpo, dentro da MTC", diz o farmacêutico Paulo Varanda, do CFF e da Associação Brasileira de Medicina Tradicional Chinesa.

Há, ainda, uma diferença principal entre a medicina ocidental e a MTC. De acordo com Varanda, enquanto as práticas ocidentais dão o antídoto para a doença (como um analgésico para quem sente dor) e os medicamentos só são prescritos quando alguém adoce, a MTC trata a pessoa.

"O paradigma é de promover o equilíbrio do corpo. Quando a pessoa está com a homeostase, que é o equilíbrio geral, dificilmente ela fica doente. E se por acaso ela ficar doente, tem subsídios para a autocura ou remissão dessa doença. É muito mais promoção da saúde do que tratar a doença", explica.

Por isso, o uso do ejiao costuma ser diário, até para manter esse estado de equilíbrio. Ainda segundo Varanda, a MTC não é oposta à medicina ocidental.

"Não é competitiva. Não vai tirar uma, mas integrar as duas. A MTC é complementar. Lá na China, são mais de cinco mil anos de história. Toda a atenção primária de saúde é feita, em 90% dos casos, com a MTC. Menos de 10% dos produtos são da medicina ocidental. Não é algo para tomar uma vez e acabar, mas para tomar ao longo da vida, como hábito cultural", completa.

Procurada, a Agência de Defesa Agropecuária da Bahia informou que o abate de jumentos acontece em estabelecimentos inspecionados pelo Mapa. O órgão federal não tinha respondido até o fechamento.

Criação de jumentos de raça desenvolvida em Minas Gerais cresce na Bahia

O abate de jumentos na Bahia cresceu em meio a um contexto em que o animal que é um dos símbolos do Nordeste perdia cada vez mais espaço. Usado tanto para o transporte quanto para arar a terra, o jumento foi dando lugar às motos e ao aluguel de tratores. Ao mesmo tempo, o jumento nordestino tem um valor comercial considerado baixo no mercado para venda.

Por outro lado, tem crescido na Bahia e em outros estados a criação de outra espécie: o chamado jumento pêga, originalmente de Minas Gerais. Desenvolvida em 1810, essa raça brasileira já tem cerca de 50 criadores especializados na Bahia.

"É uma outra vertente, que seleciona animais em busca da produção de muares com qualidade para atender fazendas no quesito de serviço e lazer", diz o técnico e árbitro da Associação Brasileira de Jumento Pêga, Coriolano Dias Bisneto.

O jumento pêga tem um valor comercial mais alto - um animal pode custar de R$ 10 mil a R$ 100 mil. Eles são usados para produzir muares (burros e mulas) marchadores. O biotipo do pêga é diferente do nordestino.

"O jumento nordestino tem um tamanho menor, ossatura mais grosseira e não tem a preocupação de qualidades zootécnicas. O jumento pêga tem padrão racial definido pelo Mapa. Tem que ter a marcha picada ou batida, além de ter um tipo morfológico de animal de cela".

As proporções e angulações da cabeça, pescoço e membros de um jumento pêga, assim, são mais próximas de um cavalo de marcha do que do jumento nordestino. Além de técnico e árbitro, Coriolano Dias Bisneto também tem sua própria criação, iniciada por seu pai na década de 1980. Atualmente, ele tem 16 fêmeas e um macho reprodutor, em Candeal. "O interesse pelo jumento pêga vem crescendo principalmente pelos valores agregados aos muares de cela".

Enquanto a criação da outra raça cresce, o jumento nordestino ainda está presente em algumas comunidades das regiões sisaleira e cacaueira.

"O jumento é um animal muito resiliente, companheiro, dócil, então algumas comunidades ainda dependem deles. Mas o que a gente tem discutido é que o futuro sustentável para os jumentos no Brasil teria três possibilidades que a gente mais enxerga hoje: o primeiro na agricultura familiar, o segundo como animais nativos desempenhando o papel positivo em ecossistemas brasileiros e o terceiro é como animal de companhia", completa Patrícia Tatemoto, do The Donkey Sanctuary.