Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Publicado em 10 de maio de 2025 às 05:00
O relógio marcava 21h30 pontualmente nesta quinta-feira (8) quando o quarteto Serj Tankian, Daron Malakian, Shavo Odadjian e John Dolmayan subiu no palco montado no Engenhão, no Rio de Janeiro. Estava aberto o segundo show da atual turnê no Brasil do System Of A Down, atraindo mais de 40 mil fãs enlouquecidos e sedentos pelo som agressivo e disruptivo da banda que, mesmo sem gravar um novo álbum há quase 20 anos, segue com uma legião de adeptos pelo mundo. >
E, no meio dessa multidão no Engenhão, lá estava eu. Embora o SOAD seja minha banda favorita de sempre, esse foi meu primeiro show do grupo. Não por minha culpa, mas por causa deles, que estavam há dez anos sem vir ao Brasil. A longa espera dos fãs foi recompensada com uma apresentação explosiva, repleta de clássicos, muitos deles com críticas políticas. Eu, particularmente, sou fã da banda porque ela mistura duas grandes paixões para mim: heavy metal e política. >
Os posicionamentos contundentes, aliás, fizeram do SOAD um fenômeno mundial e, para mim, transformaram a banda em algo muito maior: um grande movimento cultural, artístico e político. O quarteto é, desde o início, uma das grandes vozes globais pelo reconhecimento do genocídio armênio pelo antigo Império Otomano, ocorrido no início do século passado, levando à morte mais de um milhão de pessoas. Os quatro integrantes do grupo são descendentes de armênios. Shavo, o baixista, nasceu na Armênia; Serj e John nasceram no Líbano, para onde foram muitas famílias refugiadas; e Daron nasceu nos EUA, onde se conheceram e formaram a banda no final dos anos 1990. >
O tema é constantemente abordado nas letras da banda. Inclusive, ao longo desses 20 anos sem novos discos, o quarteto lançou em 2020 duas músicas, Protect the Land e Genocidal Humanoidz, que abordam o conflito entre Armênia, Turquia e Azerbaijão na região de Artsakh, onde os armênios denunciaram a execução de um novo genocídio. A Armênia, para quem não sabe, foi o primeiro país do mundo a adotar o cristianismo como religião oficial, no ano de 301. >
As questões políticas são, na verdade, uma faca de dois gumes para a banda. Se, por um lado, foi o que projetou e transformou o SOAD num fenômeno mundial, é, por outro, um dos principais motivos pelos quais o quarteto não lança novos discos. Há entre eles uma diferença de pensamento político muito clara, o que é publicamente reconhecido. Enquanto Serj, o vocalista, tem um claro viés à esquerda, alguns integrantes, como o baterista Dolmayan, tem um posicionamento mais conservador. >
Voltando ao show no Rio, eles prometeram tudo e entregaram muito mais. Foram quase duas horas de show, com 32 músicas no setlist, algo incomum para apresentações de heavy metal, que costumam ter longas músicas com gigantescos solos de guitarra. O SOAD foge à essa regra, e esse é um dos fatores pelos quais eu os considero disruptivos. Foi uma apresentação intensa, sem pausas e eletrizante. No meio da multidão havia gente de todas as idades, pais que levaram seus filhos, galera mais experiente e alguns fãs que nasceram justamente no período que o SOAD se consolidava no cenário do rock/ metal mundial. >
No repertório, todos os cinco álbuns de estúdio foram contemplados e tiveram sucessos tocados pelo quarteto na apresentação, que trouxe um setlist um pouco diferente em relação ao primeiro show no Brasil dessa turnê, realizado em Curitiba na última terça-feira (6). Não poderiam faltar os clássicos como Chop Suey!, B.Y.O.B. - usada por Alok -, Spiders, Sugar e Suggestions (uma das minhas favoritas) e baladinhas como Lonely Day. >
No público, a sensação era de êxtase. A multidão faminta pelo heavy metal intenso do SOAD começou a cantar ainda no trem que levava ao Engenhão e continuou no acesso ao estádio. Quando a apresentação começou, foi uma explosão entre os fãs, que cantaram junto com Serj e Daron praticamente todas as músicas. O som é contagiante e até quem não é metaleiro, como minha amada esposa, que me acompanhava na empreitada, vibrava e pulava. >
A alegria que tomava conta dos metaleiros era tanta que logo começaram a se formar os primeiros "mosh" - aquelas rodas em que os fãs pulam, correm em círculo e se empurram. Tudo sem confusão. A euforia teve dois ápices durante a apresentação: na sequência Soldier Side, B.Y.O.B. e Radio/Video, que mesclam músicas mais lentas com aceleradas, e com Suggestions, Psycho e Chop Suey!. >
O telão no palco era uma atração à parte. Foram diversas mensagens políticas, com críticas à forma de consumo das redes sociais, em especial sobre a exposição do sofrimento humano. "O sofrimento humano agora em 4k", dizia, ironicamente, uma das mensagens (em inglês). "Seu silêncio é parte do feed", escreveu outra. Houve também referências à Armênia e pedidos de paz, em meio a um mundo que assiste a uma escalada de conflitos em diversas regiões. >
A bateria agressiva de John, a guitarra com riffs impecáveis de Daron, o baixo poderoso de Shavo, o vocal extraordinário de Serj e o entusiasmo do público formavam uma harmonia perfeita em meio a todo aquele som pesado. A melodia que desperta rebeldia e raiva pelas injustiças do mundo, com um som agressivo, é a mesma que, paradoxalmente, traz paz e acalma o coração. É impressionante como uma banda que não lança álbum há 20 anos consegue fazer uma apresentação com o vigor e vitalidade como se tivesse estreando um novo trabalho. >
A turnê no Brasil será encerrada em São Paulo, com três shows (o último deles na próxima quarta-feira, 14). Seriam dois na capital paulista, mas a procura foi tanta que eles abriram um novo dia de apresentações. >
No Rio de Janeiro, o quarteto de descendentes de armênios finalizou o show com Toxicity e Sugar, que trazem letras com críticas contundentes à sociedade, à alienação e ao "sistema". Final épico para uma apresentação impecável. Não tiveram pausas ou discursos e declarações ao longo da apresentação, assim como não teve bis. Uma experiência musical intensa e única encerrada com muitos aplausos. Para os fãs, como eu, a sensação foi de alma lavada e paz de espírito, ainda que isso possa parecer contraditório para um show de metal. Eu, particularmente, dormi leve e tranquilo como não fazia há muito tempo.>
*Luan Santos é jornalista especialista em marketing político, torcedor do Vitória, metaleiro desde criança e pesquisador informal do genocídio armênio graças ao SOAD>