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Termo é um guarda-chuva para dezenas de características genéticas; tema é alvo de polêmica na Olimpíada
Thais Borges
Publicado em 11 de agosto de 2024 às 11:00
Desde muito cedo, a advogada Lorena*, 38 anos, teve que lidar com os olhares. Na cidade onde cresceu, no interior da Bahia, seu fenótipo chamava atenção, especialmente durante a adolescência. "Eu sofria muito sem entender o porquê. Por ser alta, ter um físico diferente, me chamavam de ‘macho-fêmea’ e mexia muito com meu psicológico".
O diagnóstico de síndrome da insensibilidade androgênica veio aos dois anos de idade, mas, há quase quatro décadas, tudo era diferente. Pelo entendimento que tem hoje, Lorena sabe que é uma mulher intersexo. Na época, contudo, nem seus pais entendiam muito bem a situação. Foi só depois de alguns anos frequentando o ambulatório especializado no Hospital Universitário Professor Edgard Santos, da Universidade Federal da Bahia (Ufba), que ela percebeu que não era a única.
"O ambulatório foi formidável, porque conseguiu me dar apoio emocional e psicológico para acompanhar meu caso com mais leveza, entender a condição genética e entender que eu não estava sozinha no mundo", conta a advogada.
Intersexo, na verdade, é um termo guarda-chuva. Sob essa nomenclatura, estão algumas dezenas de condições genéticas, incluindo a hiperplasia adrenal congênita (hac) e as conhecidas síndromes de Klinefelter (quando um homem é 47xxy) e a de Turner (mulher 45 x0). Em geral, as pessoas têm 22 pares de cromossomos somáticos e um par de cromossomos sexuais - assim, o resultado é de 46xx para mulheres e 46xy para homens.
O tema foi parar no noticiário nos últimos dias justamente por conta de polêmicas e de fake news envolvendo duas boxeadoras na Olimpíada de Paris. Além da taiwanesa Lin Yu Ting, o principal alvo foi a argelina Imane Khelif, que foi vítima de discurso de ódio de pessoas como o ex-presidente dos EUA, Donald Trump, e a escritora J. K. Rowling, autora de Harry Potter. Inicialmente, ambas foram apontadas como transgênero.
Além disso, o assunto já estava na telinha nos últimos meses: o bebê Cacau, filho de Teca, que nasceu em junho, na novela Renascer (TV Bahia/Globo), é uma criança intersexo. No ano passado, a influenciadora de beleza Karen Bachini, que tem 2,8 milhões de inscritos em seu canal no YouTube, revelou ser uma pessoa intersexo.
Antes de tudo, porém, o Brasil já teve um caso de uma atleta intersexo de grande repercussão: a judoca Ednanci Silva, que foi ouro no Pan do Rio, em 2007. Previamente à sua participação na Olimpíada de Atlanta, em 1996, ela passou por uma cirurgia para retirada de testículos internos. Ednanci já falou publicamente sobre os ataques e o preconceito que sofreu na época.
Identificação
No caso das boxeadoras de Paris, a argelina Imane Khelif vinha enfrentando polêmicas desde o ano passado, quando foi desclassificada da final do Mundial amador, organizado pela Associação Internacional de Boxe (IBA). Na ocasião, o presidente da entidade, o russo Umar Kremlev, alegou que a atleta tinha cromossomos XY - sem apresentar provas. No entanto, o Comitê Olímpico Internacional (COI) descredenciou a IBA também no ano passado, por avaliar que a entidade falhou em questões como governança e ética.
Nesta semana, o presidente do COI, Thomas Bach, defendeu as duas atletas e afirmou que elas nasceram e foram criadas como mulheres. O pai de Imane chegou a vir a público mostrar a certidão de nascimento da filha. Além da alegação do presidente da IBA, não há nenhuma informação que confirme que Imane é intersexo. Ainda assim, a repercussão do episódio das boxeadoras não deixou de ressoar entre pessoas intersexo.
A advogada Lorena* sequer conseguiu acompanhar por muito tempo. "Eu me vi naquela imagem e é muito doloroso. A sociedade é muito cruel. Ela não disse se seria intersexo ou não, mas intersexo já é uma coisa pesada quando a gente não entende. Passei por muito bullying na escola, na minha comunidade. Todo mundo ri, como se você fosse uma atração. Aquele choro dela trouxe muitos gatilhos", conta.
Quando criança, Lorena chegou a ficar internada no Hupes por um período. Uma vez com o diagnóstico, ela recebeu a indicação de fazer a cirurgia de correção vaginal, porque tinha a genitália atípica. Temerosos, seus pais decidiram esperar mais e foram acolhidos pela equipe. Já na adolescência, ela fez o procedimento cirúrgico, ao mesmo tempo em que seguia com acompanhamento hormonal.
"Se fosse hoje, eu não faria a cirurgia. Acho que precisa de mais tempo para a pessoa intersexo entender essa condição e optar por ela sem que seja algo abrupto, sem ser levada por terceiros. A pessoa precisa ter autonomia sobre o próprio corpo", argumenta.
Segundo Lorena, a vivência no ambulatório, inclusive com outros intersexos, tornou a vida mais leve. "Eu precisava estar naquela sala rodeada de médicos. Gerava vergonha, mas era muito suavizado pela compreensão de que eu podia ajudar outras pessoas a não passar pelo que eu passei. Hoje, não trago de forma aberta, porque é minha vida pessoal. Mas, se alguém me perguntar, vou falar, porque precisamos naturalizar. Pessoas intersexo existem", reforça.
Diagnósticos
Ainda que seja uma das letras da sigla LGBTQIAPN+, o I de intersexo talvez seja o mais destoante dela. Não se trata de identidade de gênero nem de orientação sexual, mas de um grupo de características sexuais congênitas que não se encaixam em normas médicas e sociais para corpos masculinos ou femininos. Pela definição adotada por entidades como a Associação Brasileira de Intersexos (Abrai), essas características criam riscos ou experiências de estigma, discriminação, ódio e danos.
No passado, já usou-se o termo ‘hermafrodita’. Atualmente, essa definição é considerada tanto incorreta, do ponto de vista teórico, quanto ofensiva. Já na Medicina, considerando que há uma ampla gama de condições que podem ser intersexo, convencionou-se chamar de diferenças de desenvolvimento sexual (DDS), nos últimos anos.
De acordo com a endocrinologista e coordenadora do ambulatório que inclui o serviço de referência em intersexualidade do Hupes, Luciana Oliveira, existem sete etapas no processo de desenvolvimento das características ao longo da vida. Esse processo começa ainda na embriogênese - quando se forma o embrião - e vai até a puberdade.
"Tem até essas etapas para ver se a pessoa está caminhando na direção do que é para ser menino ou menina. A gente nem está entrando em transgeneridade, que é como a pessoa se vê. Estou falando de questões biológicas", diz.
Na formação do zigoto, uma das síndromes mais conhecidas que pode acontecer é a de Turner. Outra possibilidade é quando, ao invés de formar testículos ou ovários, formam-se gônadas intermediárias. Há a possibilidade de ter alterações e, assim, não resultar em testículos bem formados ou até surgirem gônadas mistas.
Além disso, quando essa estrutura é formada, ela produz hormônios que são importantes para a diferenciação da genitália - ou seja, as partes sexuais que as pessoas veem. "Os hormônios é que vão determinar como isso vai se formar. A gente precisa que se produza os hormônios e que o receptor do hormônio funcione. O receptor seria a fechadura e, se ela tiver defeito, não adianta, porque não vai funcionar", acrescenta a médica.
Assim, uma pessoa 46xy, por exemplo, pode produzir testosterona e tudo leva à ideia de que será um menino. Mas, se o receptor de testosterona não funcionar, será uma menina. "Outra coisa é que nem sempre é de 0 a 100, uma genitália 100% feminina e 100% masculina. Às vezes, existem quadros intermediários. Por isso, muito tempo foi chamado de genitália ambígua, mas o termo correto hoje é genitália atípica".
Além de alterações na genitália externa, é possível ter diferenças internas. Algumas pessoas podem não ter útero e trompas ou ter genitália masculina, mas, internamente, apresentar trompas. Por fim, a última fase é na puberdade. Se uma pessoa que é identificada no feminino entra numa puberdade feminina, ela desenvolve curvas e mamas no corpo, por exemplo. Por outro lado, há algumas condições hormonais que podem fazer com que essa menina comece a virilizar.
Nesse caso, trata-se da deficiência da enzima 5-alfa redutase, que transforma a testosterona em di-hidrotestosterona. "São meninas que virilizam, então, uma pessoa 46xy era para ter nascido masculina, mas, como não tem esse hormônio, não consegue fazer a genitália masculina".
Na Bahia, de acordo com a endocrinologista, há uma prevalência um pouco maior dessa variação, quando comparado a outros centros de pesquisa, ainda que não existam dados compilados comparativos. "Nós acreditamos que seja por conta de casamentos consanguíneos, porque essas condições de saúde geralmente são de origem genética e são autossômicas recessivas. Por isso, casamentos na mesma família interferem, assim como o estupro (nas famílias), que não podemos negar", explica.
Em geral, é possível identificar que alguém tem variação intersexo desde criança, já que muitos casos são processos ocorridos na gestação. Além disso, é possível pedir exames complementares, como de sangue, ultrassonografia pélvica e o cariótipo, que é um exame genético que identifica o número de cromossomos.
Definição
Ao longo dos anos, o processo de definição do sexo de uma criança intersexo mudou. Em geral, a decisão é tomada em conjunto, junto com a família e com acompanhamento multiprofissional. Para a endocrinologista Luciana Oliveira, da Ufba, é um desafio que tem que levar em conta até mesmo as crenças da família.
"Quem vai criar essa criança é a família, não os médicos. Mas, ao mesmo tempo, tem que lembrar se essa criança vai ser um adulto que vai ter suas próprias decisões e que vai se identificar de alguma forma. Já houve, no passado, condutas mais radicais em que, depois, a criança não concordava com a decisão tomada".
Por isso, atualmente, ela considera que os médicos têm uma posição mais ‘conservadora’ quanto à cirurgia. Antigamente, era comum haver cirurgias precoces de adequação sexual de crianças intersexo. Para muitos intersexos, contudo, essa é uma forma de mutilação. Hoje, só são feitas cirurgias pequenas, para corrigir situações que atrapalhem a vida da criança, a exemplo de quando ela não consegue urinar porque não tem um canal na genitália que permita isso.
Assim, a abordagem terapêutica vai depender muito da situação hormonal de cada um, como explica o médico urologista Ubirajara Barroso Júnior, professor da Ufba e da Bahiana de Medicina e responsável pela cirurgia urológica reconstrutora no Hupes.
Uma das causas mais comuns que levavam à cirurgia no passado era a hiperplasia adrenal congênita. Essa condição acomete pessoas com cariótipo 46xx, que seriam meninas. No entanto, quando isso acontece, elas apresentam uma genitália ambígua, com certo grau de virilização. Em meninos, essa síndrome costumava passar despercebida e, como consequência, muitos morriam de desidratação.
"Essas crianças tinham uma alteração no controle no sódio. Com o teste do pezinho, conseguimos rastrear, a partir de 2014. Hoje, esses pacientes sobrevivem", afirma.
Mas, de forma geral, ele explica que o diagnóstico de pessoas intersexo aparece logo. Em muitos casos, a criança é diagnosticada ao nascer, especialmente no caso de genitálias atípicas. Se não for identificado logo cedo, a pessoa corre risco de câncer.
"Quando há alterações em eletrólitos, as pessoas podem falecer precocemente. Quando os testículos ficam no abdômen, o risco de tumor aumenta. A outra coisa é a infertilidade. Quando há ausência de vagina externa, no momento da menstruação, o líquido não sai e causa dor, impedindo a relação sexual", exemplifica.
Segundo Barroso Júnior, não é incomum que os pacientes que cheguem ao ambulatório não se definam como pessoas intersexo. "Eles são invisibilizados e, por conta disso, têm vergonha de aparecer. Talvez, se fosse mais frequentemente discutido, mais pessoas quisessem falar. Mas tudo mobiliza questões emocionais", pondera.
Humanizado
A posição da Abrai também é de defender que a cirurgia de uma criança intersexo seja postergada ao máximo, dentro do possível - a menos que haja alguma condição de saúde, como a impossibilidade de urinar.
Para a presidente da entidade, a pedagoga e psicanalista Thais Emilia, que é uma mulher intersexo e mãe de crianças intersexo, além de escutar as demandas da criança, deve haver acompanhamento multidisciplinar. Uma das razões para isso é o fato de que a intersexualidade seria uma identidade biopolítica.
Em sua experiência pessoal, ela conta que demorou a ter a primeira menstruação e sentia algumas dores. "Fui obrigada a tomar hormônio feminino, mas não deu muito certo e toquei minha vida. Sempre fiz acompanhamento, mas eu falo que existem um recorte de classe na questão intersexo no Brasil. Eu sempre pude escolher meus médicos. O que me acompanha desde a adolescência me acompanha até hoje e é uma pessoa super humanizada", afirma ela, que é doutora em Educação pela Unesp.
O filho de Thais, Jacob Christopher, nasceu em 2016 e serviu de inspiração para o bebê Cacau, de Renascer. Nascido com genitália atípica, Jacob ficou sem direito a certidão de nascimento por dois meses. Consequentemente, Thais não teve acesso à licença maternidade.
Ela denunciou o caso em conferências de direitos humanos e ao Conselho Nacional de Justiça. Hoje, a data do aniversário de Jacob, 26 de setembro, é o dia da conscientização contra a motivação genital infantil.
"Na Abrai, a gente atende a todas as famílias de diferentes religiões, diferentes pensamentos políticos. Então, o que existe é um carinho onde a gente tem um grupo de mães que conversam muito".
Foi somente em fevereiro deste ano que o Brasil autorizou a primeira pessoa a ter o registro como intersexo na certidão de nascimento. Trata-se da jornalista pernambucana Céu Albuquerque, 33 anos, que entrou na Justiça para reforçar seu posicionamento político enquanto intersexo.
"Desde que nasci, sei que tenho hiperplasia adrenal congênita (hac), mas não sabia que o termo era intersexo. Desde criança, fui para muitos hospitais e passei por muitas violências. Enquanto o teste de cariótipo não saía, fiquei seis meses sem registro de nascimento e sem assistência médica. Poderia ter morrido de uma crise de adrenal", desabafa.
Ao completar um ano, Céu, que tinha genitália atípica, passou pela cirurgia. "Fui completamente mutilada. Retiraram todo o meu clitóris. Durante o crescimento, fazia consultas periódicas e fui abusada, violentada, exposta. Procurei outros médicos para reverter a mutilação e todas deram errado. Passei por mais sete cirurgias e só pioraram".
A última intervenção foi feita em São Paulo, no ano passado, e ela acredita que foi a que mais tenha ajudado esteticamente e também do ponto de vista funcional. Céu se tornou uma ativista da causa, para lutar por mais políticas públicas e pelo fim de cirurgias como a que passou.
"Tive a ideia da certidão porque achei que seria uma porta para que outras pessoas pudessem conquistar e crianças intersexo pudessem ser registradas. Minha luta sempre foi para que essas crianças não continuem sendo mutiladas". O processo todo levou três anos.
De acordo com a professora Andréa Leone de Souza, docente de Direito Civil da Universidade Federal do Oeste da Bahia (Ufob), apenas em 2021, com o provimento 122 do CNJ, foi garantido que as pessoas intersexo pudessem ser registradas no nascimento. No entanto, a proposta aprovada pelo provimento foi de ‘sexo ignorado’. "Entendemos que não é a melhor solução, mas, claro, só de garantir o registro civil, que nos garante a qualidade de cidadão pra acessar serviços mínimos como saúde e educação, já é um avanço", afirma ela, que é líder do grupo de pesquisa EXiSTo.
A alteração para intersexo, como o caso de Céu, por enquanto, só acontece de por meio de autorização judicial. "Hoje, no cartório a possibilidade será registrar a criança com sexo ignorado, tendo a garantia de alterar o registro a qualquer tempo, independente de laudo médico ou psicológico, o que é um avanço importante", acrescenta.
A professora enfatiza que pessoas intersexo devem ter seus direitos garantidos e ser ouvidas para a formulação de leis que acolham suas necessidades. "Hoje, entendo que o ideal seria a garantia de registro sem a indicação do sexo, ou o uso do termo intersexo, para aquelas pessoas que quiserem, com a possibilidade de alteração em qualquer momento, pela declaração da pessoa", completa.
*Nome fictício