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Fernanda Santana
Publicado em 13 de outubro de 2024 às 05:00
Aos 53 anos, uma mulher teve que aprender a viver a própria vida. Às vésperas da terceira idade, ela não sabia nem ler — o que, diante de tudo o que ainda precisava aprender, até poderia ser visto como o menor dos seus problemas. Abandonada pela família na infância, e alojada por um casal do bairro da Federação, em Salvador, ela desconhecia tudo que não fosse a rotina dos Jaqueira Cruz.
A família foi incluída, na última semana, na lista suja do trabalho escravo elaborada pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) para expor quem são os empregadores acusados de submeter trabalhadores a condições análogas à escravidão. Junto aos Jaqueira Cruz, estão os Spagnuolo e os Peluso Loureiro.
O MTE atualiza duas vezes ao ano o cadastro e, agora, a Bahia responde por 69 dos 727 empregadores brasileiros (entre eles famosos, como o cantor Leonardo) acusados de escravizar pessoas - 35% são empregadores domésticos.
A pena para quem submete trabalhadores à situação análoga à escravidão é de 2 a 8 anos de reclusão. Mas, hoje, não há ninguém preso em regime fechado, na Bahia, pela razão de negar salário, férias e descanso a alguém - alguns dos elementos que configuram trabalho análogo à escravidão.
Desde 2020, as denúncias relacionadas ao tema só crescem no Brasil: a quantidade de queixas enviadas ao Disque 100, do Ministério de Direitos Humanos, cresceu 64% (3.430) em 2023, quando 35 pessoas foram resgatadas na Bahia.
"Aos poucos vem ocorrendo um processo de desnaturalização, pela sociedade brasileira, da super exploração da trabalhadora doméstica; que as pessoas estão tomando consciência da ilegalidade dessas condutas e da importância de denunciar", avalia a auditora-fiscal do trabalho Liane Durão.
Nos casos de resgate de trabalhadores domésticos, no entanto, nota-se como as vítimas “ficam mais tempo em condição de exploração, comparados aos trabalhadores resgatados em outras atividades”, completa ela.
“Esse tempo extenso de exploração, inclusive, afasta uma conclusão que poderia ser tirada de forma desavisada, de que esses casos de superexploração do trabalho doméstico são recentes. Com certeza não, essas explorações não estão sendo iniciadas agora”, avalia Durão.
As famílias flagradas por fiscalizações de auditores fiscais do trabalho e do Ministério Público do Trabalho (MPT) apresentaram uma justificativa em comum: a empregada, na versão delas, era "da família" e por isso não recebia salário. O pretexto afetivo que surge nas inspeções em residências, no entanto, não pode ser usado para explorar e negar direitos.
“A fiscalização de trabalho sempre apura essa mistura retórica da natureza das relações: as pessoas estão trabalhando e sendo pesadamente exploradas, com uso desse subterfúgio cruel que apela para o fato de que a pessoa, de fato, sente algum afeto pelo explorado, mas ela é quem está se dando muito mal, sem acesso a outras formas de socialização”, explica o professor de Economia da Universidade Federal da Bahia Vitor Filgueiras, que pesquisa o tema e coordena o projeto Vida Pós-resgate, uma parceria com o MPT voltada para vítimas de trabalho análogo à escravidão.
A família Spagnuolo gostava de veranear e celebrar datas comemorativas na casa da Ilha de Itaparica. No aniversário de 74 anos de Giovani, o dono da casa com a esposa, Noemia Correia, os dois precisaram de ajuda para organizar a festa. Depois de pedir referências, o casal conheceu Jéssica* (nome fictício), uma nativa de 32 anos.
Os patrões disseram gostar tanto dos serviços de Jéssica naquele dia que dispensaram o antigo caseiro para encarregá-la, a partir dali, também de limpar a piscina e aparar a grama. A nativa passou, então, a trabalhar diariamente em casa. Recebia R$ 20 por dia.
Em 2017, Jéssica recebeu a proposta de dividir o mês entre a Ilha e o bairro de Vila Laura, em Salvador. Noemia, servidora pública aposentada, estava com câncer e demandava atenção extra. Conforme o estado de saúde da patroa piorava, mais tempo Jéssica passava longe de casa.
A jornada de trabalho começava às 6h e só terminava por volta das 20h30. Era a hora em que Giovani, engenheiro civil de um órgão municipal, estava de volta do serviço.
O filho de italianos, que ainda é dono de dois prédios na Federação, e a esposa nunca pagaram salário para Jéssica. Os R$ 150 mensais prometidos foram depositados só nos primeiros meses. Folga também não existia.
Jéssica só tinha descanso quando os patrões saíam, raridades em que ela aproveitava para voltar para casa. Em Salvador, ela não tinha amigos, nem familiares. Os patrões diziam que ocupavam esses papéis - e que por isso não pagavam salário. Eram "família".
Durante a pandemia, um vizinho desconfiou da situação de Jéssica. O homem estranhava ver aquela mulher, na época grávida, fora de casa, responsável pelas compras.
“Foi aí que ela foi contando a história dela, e ele entrou em contato comigo”, conta a advogada Caroline Pinho. “Mas demorou um ano para que ela reconhecesse a gravidade.”
Um dia, Jéssica arrumou a mochila, pegou a filha (que estava com 2 anos) e voltou para ilha. O pretexto da viagem era a suposta celebração do aniversário da menina. A advogada de Jéssica, então, iniciou o processo judicial contra a família e acionou o MPT e o MTE. Durante a fiscalização, os órgãos identificaram trabalho análogo à escravidão.
Em agosto deste ano, o juiz do trabalho acatou a denúncia do MPT e condenou os Spagnuolo ao pagamento de R$ 100 mil de indenização por dano moral. O valor é destinado a ações de combate ao trabalho escravo organizadas pela instituição. O processo trabalhista movido por Jéssica ainda está em curso.
Noemia faleceu em maio deste ano, e a ação será respondida pelos três herdeiros dela e Giovanni.
Hoje, Jéssica vive do Bolsa Família (R$ 600) e não pensa em retornar ao trabalho doméstico. No verão, ela quer aproveitar o fluxo na ilha para vender comida na praia.
Os "Peluso Loureiro" são um sobrenome conhecido no sul da Bahia, principalmente entre Canavieiras, Itabuna e Porto Seguro. Os precursores dessa família são italianos e portugueses que chegaram ao Brasil no fim do século 19 e deixaram herdeiros em posições políticas e econômicas importantes, como fazendeiros.
Heny Peluso Loureiro, falecida no ano passado, era uma delas. Possuía uma fazenda e morava em Porto Seguro, próxima de dois filhos. Eles não eram, no entanto, seus únicos companheiros. Ao lado dessa senhora, estava, quase sempre, uma mulher com quem não tinha parentesco.
No ano passado, auditores-fiscais do trabalho descobriram o que estava por trás dessa presença tão constante de Maria (nome fictício) na vida daquela família. Uma denúncia enviada ao MTE apontou que a mulher trabalhava em condições análogas à escravidão.
Segundo a fiscalização realizada na casa e os relatos colhidos, os auditores-fiscais do trabalho constataram a existência da situação: Maria trabalhava ininterruptamente desde a infância na casa, sem direito a folga, férias, salário, ou qualquer reconhecimento de vínculo trabalhista.
Maria morou dos 7 aos 53 anos na casa de Heny. Há a suspeita de que ela não seja brasileira e tenha sido deixada pelo pai, ainda pequena, em um abrigo em Canavieiras.
Foi lá que Heny conheceu a garota e a levou para casa, de acordo com familiares dos patrões de Maria.
Aquela senhora, no entanto, não registrou a garota, nem iniciou os trâmites da adoção: emitiu uma certidão de nascimento com nomes falsos de mãe e pai.
Maria cresceu junto aos filhos de Heny. Mas as diferenças estavam postas. Eles, por exemplo, estudaram. Ela não. Em quatro décadas, ainda de acordo com o MPT, os patrões cometeram diferentes infrações, como induzir Maria a se submeter a uma cirurgia de retirada do útero, após o diagnóstico de um mioma.
Na avaliação da advogada da vítima, Marta Barros, Maria não compreendeu qual era seu problema de saúde e o motivo de precisar retirar o órgão.
Os patrões, ainda conforme o MPT, chegarem a solicitar benefícios sociais em nome de Maria - o que levantou a suspeita da Prefeitura de Porto Seguro, depois de um cruzamento de dados, e provocou uma reviravolta na história.
No fim do mês passado, o MPT e os representantes do espólio da patroa e os dois filhos de Heny firmaram um acordo. No documento, homologado pela Justiça do Trabalho, os empregadores não reconhecem culpa.
Na versão deles, a vítima era da família e, por isso, não precisaria ser paga. Os patrões terão que pagar R$ 500 mil de indenização.
Maria está trabalhando como empregada doméstica e iniciou os estudos. Os herdeiros não quiseram falar a respeito.
Nos anos 80, uma professora recepcionou uma criança de 7 anos, em Salvador. A família da garota, de Sergipe, não podia arcar com a criação dela, que foi abandonada na casa de Edneia Cruz - no futuro, ela usaria essa história como pretexto para justificar o trabalho doméstico realizado por quase cinco décadas, gratuitamente, pela sergipana.
Desde criança, Lúcia (nome fictício) foi responsabilizada pelo asseio da casa e qualquer demanda que aparecesse, segundo o MPT. Enquanto crescia, a menina ganhava novas responsabilidades, como cuidar dos filhos da patroa na casa onde todos viviam, no bairro da Federação.
As outras crianças estudaram, mas ela não. A patroa, que ensinava em uma escola privada de Ondina, justificou o analfabetismo de Lúcia como "falta de vontade" dela. Isso aconteceu em abril de 2022, quando a exploração contra e empregada foi denunciada. Ela tinha 53 anos.
Os auditores-fiscais de trabalho perguntaram a Lúcia sobre o que tinha acontecido nos 46 anos antes daquela fiscalização.
Em uma das questões, os servidores perguntaram: existe a possibilidade de um dia você acordar e não querer realizar as tarefas domésticas? "Não", ela respondeu, chorando.
Na vida em que passou dentro da casa dos patrões, não sobrou espaço para Lúcia ter atividades e relacionamentos externos. Ela não tinha amigos, nem nunca namorou.
A casa da família Cruz é de dois pavimentos e tinha espaço para todos da família, mas Lúcia não tinha um cômodo só para ela. Dividia o quarto com patrões - os últimos foram a neta de Edineia e o namorado dela.
A mulher denunciada e seu marido, Francisco, ofereceram outra versão. A relação com Lúcia, segundo ambos, era filial. "Sempre viveu de modo igualitário com os demais filhos", afirmou para os auditores e, depois, no decurso do processo judicial movido contra ela.
Em abril de 2024, um juiz penal condenou os dois acusados a três anos de reclusão, mas em regime aberto. Agora, Lúcia descobre a liberdade. Está noiva e trabalhando com carteira assinada.