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Raquel Brito
Publicado em 8 de setembro de 2025 às 06:00
Anos atrás, a história de uma supervisora de controle operacional da Latam Brasil chamou atenção Brasil afora. Experiente na aviação e com uma trajetória de 14 anos na empresa, ela descobriu que ganhava 22% a menos que colegas homens que exerciam a mesma função. Ao questionar a companhia aérea, a resposta foi que seria um erro no sistema, mas que não seria corrigido, uma vez que, por ser mulher e solteira, ela “não tinha tantas despesas” quanto os homens. >
Casos como esse, veiculado por O GLOBO em março de 2023, não são isolados. Na Bahia, a situação se repete: as mulheres recebem em média R$ 600 a menos que os homens, de acordo com dados do primeiro semestre de 2025 do Painel Transparência Salarial, produzido pelo Ministério do Trabalho e Emprego. Enquanto a remuneração média dos homens baianos é R$ 3.361,14, as mulheres recebem, em média, R$ 2.739,76. >
Para Juliana Costa Pinto, advogada especializada em Direito do Trabalho, receber menos pela mesma função não significa apenas ganhar menos dinheiro: é ser sistematicamente desvalorizada. “Esse cenário gera frustração, desmotivação e desengajamento profissional. Além de reduzir a produtividade, provoca impactos sérios na saúde mental, com altos índices de ansiedade, estresse e depressão entre trabalhadoras submetidas à desigualdade. A mensagem transmitida é clara: o esforço da mulher vale menos que o do homem. E isso corrói tanto a dignidade individual quanto o potencial coletivo do mercado de trabalho”, diz.>
Esse cenário é ainda mais notável ao levar em conta que, em julho deste ano, a Lei nº 14.611/2023, que trata da igualdade salarial entre homens e mulheres que cumprem o mesmo trabalho, completou dois anos em vigor. De lá para cá, houve avanços relevantes, como a exigência de relatórios de transparência salarial e de critérios remuneratórios, mas a eficácia ainda depende do compromisso das empresas com o cumprimento das obrigações e da atuação firme dos órgãos de fiscalização, como o Ministério do Trabalho e o Ministério Público do Trabalho. Juliana elabora: >
“Não basta ter a lei no papel, é preciso que ela seja acompanhada de auditorias salariais periódicas, planos de carreira claros e políticas efetivas de diversidade e inclusão. Acontece que a máquina pública, além de não ter estrutura para esse tipo de fiscalização, não se estrutura para tanto. Contudo, a mudança não pode e nem deve decorrer apenas da fiscalização e sanção do Estado. O ideal seria uma mudança no cenário segregatório, rompendo o ciclo secular de desigualdades, o que depende, também, de uma mudança do senso comum coletivo.”>
Para mulheres negras, a situação é ainda pior>
Em comparação com o salário médio dos homens brancos, grupo mais bem remunerado, os ganhos das baianas negras é R$1,8 mil menor. O número escancara a força que fatores raciais ainda têm na empregabilidade na Bahia e em todo o Brasil.>
Doutora em Ciências Sociais pela Universidade de Campinas (Unicamp), professora do departamento de Gênero e Feminismo da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e pesquisadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (Neim) da UFBA, Maíra Kubik reforça que essa imbricação entre gênero e raça está longe de ser recente: tem origem no histórico escravista do Brasil, que impacta até hoje a maneira como a sociedade brasileira se organiza. >
“Não à toa, a maioria das pessoas pobres não é branca e está em curso um genocídio da juventude negra. Isso tem relação direta com o período escravista e com a transição para o Brasil República, em que não houve políticas de inclusão social nem qualquer tipo de reparação para as pessoas que foram escravizadas. Soma-se a isso a também histórica estruturação patriarcal da sociedade, e, dessa forma, as divisões sexual e racial do trabalho combinadas fazem com que homens brancos sejam mais bem remunerados e ocupem funções de maior prestígio social”, explica. >
Foi buscando alcançar a independência financeira e uma remuneração mais justa que Monique Evelle, empresária de 30 anos, começou a empreender. Hoje, ela é a Shark mais jovem do Shark Tank América Latina e foi reconhecida pela Forbes Under 30 – lista que reconhece jovens talentos que se destacam em seus ramos de atuação – e pela Most Influential People of African Descent (MIPAD/ONU). Monique conta que vê todos os dias casos de mulheres que buscam abrir o próprio negócio com o objetivo de alcançar um rendimento melhor do que recebem em empregos formais. >
“Muitas mulheres começam a empreender porque percebem que, mesmo entregando mais do que os colegas homens, continuam ganhando menos. Outras empreendem porque chegam ao teto do que o mercado ‘permite’ pagar a elas. Esse movimento é crescente: mulheres que decidem sair do mercado formal, ou que mantêm o emprego mas criam algo paralelo, justamente para não ficarem reféns da lógica da desigualdade. A pandemia também acelerou isso, com muitas mulheres transformando habilidades em fonte de renda e, depois, expandindo para negócios mais estruturados”, diz.>
No caso de muitas mulheres negras, a empresária percebe que os negócios não são apenas uma escolha, mas uma estratégia de sobrevivência e liberdade. Para elas, defende Monique, ter o próprio empreendimento significa poder definir o valor do seu trabalho, construir narrativas sem pedir permissão e acessar diretamente o cliente, sem intermediários que costumam desvalorizá-las. >
“É uma forma de transformar talento em autonomia financeira. Só que, diferente do discurso romantizado, as mulheres não empreendem porque acordaram um dia ‘inspiradas’, mas porque o mercado formal fecha as portas. Empreender, nesse cenário, é dizer: ‘se vocês não querem me pagar de forma justa, eu vou criar o meu próprio espaço, gerar minha própria renda e ainda empregar outras pessoas como eu.’ É resistência, mas também é construção de futuro. Por isso, apoiar mulheres negras empreendedoras não é só sobre inclusão, é sobre reparação histórica e investimento em inovação. Porque quando a gente empreende, não cria só um negócio: cria comunidade, cria oportunidade, cria cultura.”>
A resistência das empresas em contratar mulheres é facilmente percebida nos dados. O Painel Transparência Salarial mostra que, na Bahia, menos da metade dos vínculos empregatícios no estado são com mulheres. Os cargos ocupados por elas correspondem a 311.151 dos 798.535 dos vínculos registrados na Bahia, o equivalente a 38,97% do total.>
“A má remuneração das mulheres, sobretudo das mulheres negras, não é fruto de um acaso, mas de um sistema estruturado de desigualdades. O racismo e o patriarcado ainda determinam quais espaços são ‘reservados’ a elas no mercado de trabalho. Assim, funções historicamente associadas ao cuidado, como limpeza, telemarketing e enfermagem, seguem precarizadas e menos valorizadas. Além disso, a divisão sexual do trabalho reforça a falsa ideia de que as mulheres não estariam ‘disponíveis’ para cargos de liderança em razão da maternidade ou de responsabilidades familiares”, afirma Juliana.>
Revertendo o cenário>
Um passo de cada vez, é possível que o panorama de desigualdade salarial seja transformado. A lei é um início importante, mas, como dito pela advogada Juliana Costa Pinto, precisa ser posta em prática de maneira eficaz. Caso não seja, há sanções severas previstas.>
“As multas podem chegar a dez vezes o valor do salário devido à trabalhadora discriminada, bem como multas administrativas de até 3% da folha salarial (limitada a 100 salários mínimos). Além disso, há possibilidade de indenizações por danos morais e de ações coletivas movidas por sindicatos ou pelo MPT. Portanto, a omissão custa caro, não apenas financeiramente, mas também em termos de reputação institucional”, diz a advogada. >
Maíra Kubik, do Neim, concorda com a relevância da medida, mas defende que outras providências precisam vir junto. “É preciso que [a lei] seja efetivamente implementada e combinada com políticas de longo prazo, de formação, desde a escola, para o enfrentamento ao racismo e ao sexismo. Os meios de comunicação também têm um papel fundamental na difusão de informações que permitam enfrentar as hierarquias sociais, trazendo dados e relatos de vida que sensibilizem a população quanto a essas pautas.”>
Para aquelas que veem como a melhor saída a gerência do próprio trabalho e querem começar a empreender, esse também é um bom jeito de valorizar o talento. Monique Evelle tem algumas dicas: saber o próprio valor, não normalizar fazer o dobro para receber o mínimo, investir em conexões. E por último e talvez mais importante, não aceitar a desigualdade como inevitável. >
“Questionar e pressionar também faz parte da estratégia. Cada vez que uma mulher se posiciona, abre espaço para outras. A remuneração justa começa quando a gente para de aceitar menos do que merece e passa a jogar o jogo com consciência, estratégia e coragem.”>