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Carolina Cerqueira
Publicado em 23 de agosto de 2025 às 05:00
Depois de umas boas rodadas de bebida numa mesa de bar ou numa festa, o momento mais decisivo da noite não é a hora de pagar a conta. O ápice vem depois disso. É hora da pergunta: Vai para casa como? Se a resposta for “de carona, de táxi, de transporte público ou de aplicativo", vai ter um público que a aprove. Mas se a resposta for “dirigindo”, também vai... e aí está o problema. >
A Lei Seca (nº 11.705) completou 17 anos em 2025. O relatório publicado pela Secretaria Nacional de Trânsito (Senatran) coloca a legislação como “um marco na segurança viária brasileira” e aponta que houve, desde 2019, uma queda de 21% nas autuações por embriaguez ao volante. >
Mas o mesmo relatório mostra que, em 2024, a Polícia Rodoviária Federal registrou mais de 7 mil sinistros provocados por motoristas que ingeriram álcool ou substâncias psicoativas somente em rodovias federais. As pessoas seguem dirigindo alcoolizadas e provocando acidentes. >
No sábado passado (16), um motorista atropelou um corredor na orla da Pituba, em Salvador. O acidente aconteceu no início da manhã e, antes do atropelamento, derrubou um poste e uma barraca. A vítima fraturou as duas pernas e teve uma amputada. >
Também em Salvador, um motorista foi preso suspeito de dirigir embriagado na contramão e matar um motociclista na madrugada do dia 2 de fevereiro deste ano, na BR-324. Na madrugada do dia 26 de maio, mais um caso na cidade. Um blogueiro foi preso em flagrante após um acidente que causou a morte de outro motociclista no Matatu de Brotas. Ele não tinha carteira de habilitação e havia saído do Barradão, onde postou fotos com bebida alcoólica. >
Os casos estão por todo o país, diariamente. No último dia 17, em São Paulo, um motorista suspeito de embriaguez bateu em um ônibus depois de atravessar um sinal vermelho. Quatro pessoas ficaram feridas. >
Comportamento >
Os casos seguem um padrão. O relatório da Senatran mostra que a maioria desses motoristas é formada por homens de 30 a 39 anos, com zero a 10 anos de habilitação. A maioria das infrações é registrada de madrugada, entre meia noite e 6h, aos sábados e domingos, com alta nos meses de fevereiro e dezembro, que compreendem o Carnaval e as festas de final de ano. >
As infrações ainda costumam ser associadas a cidades com maior presença de atividade noturna e eventos festivos. Lideram o ranking de capitais, em ordem: São Paulo (231 mil infrações), Brasília (198 mil), Rio de Janeiro (122 mil), Belo Horizonte (72 mil) e Salvador (55 mil). >
“Tem um perfil de pessoas. São homens jovens, de repente solteiros. Pode ser algo muito ligado a uma questão de status do carro. Motoristas que querem chegar com o próprio carro até o local. Vemos isso acontecendo menos entre homens casados. É o que eu observo no meu ciclo social”, contribui o ex-secretário de Mobilidade de Salvador e ex-superintendente da Transalvador Fabrizzio Muller. >
Um jovem de 25 anos que pediu para não ser identificado confessou que dirige sob efeito de álcool quando vai a lugares perto de casa ou que têm estacionamento fácil. “Eu prefiro ir com meu carro porque acho mais cômodo e não gosto de depender de aplicativo”, diz ele, que receberá o nome fictício de Rafael nesta reportagem. >
Rafael, que tirou carteira aos 20 anos, foi pego e multado em uma blitz este ano quando voltava de um restaurante acompanhado de uma mulher com quem havia tido um encontro. Naquele dia, sua tática usual de monitorar blitze por grupos de WhatsApp falhou. >
Outro jovem, de 28 anos, também compartilhou os hábitos de direção. Ele receberá o nome fictício de Lucas. Lucas tirou carteira aos 18 e diz que dirige quando bebe porque não quer pagar caro por transporte por aplicativo e não considera o transporte público satisfatório de noite e de madrugada. “Muitas vezes a soma do valor das corridas de ida e volta ultrapassa o valor que eu gasto no bar”, alega. >
Lucas só não escolhe dirigir quando vai para lugares distantes de sua casa e que têm no trajeto regiões com histórico de blitze ou então quando vai a um encontro com alguma mulher que não aprovaria a atitude de combinar álcool e volante. “Mas quando eu estou de transporte por aplicativo e não passo por nenhuma blitz, sinto que fui otário e que poderia ter ido de carro”, compartilha. >
Lucas conta que nunca foi pego, mas já passou por uma blitz quando tinha consumido álcool. Ligou a luz, abaixou o vidro e passou sem ser abordado. “Depois disso, fiquei seis meses sem dirigir depois de beber porque fiquei traumatizado, mas logo voltei a fazer isso”, confessa. >
Por fim, Lucas diz que não tem medo de causar acidente. “As ruas de Salvador de madrugada são desertas, não tem carro passando. É mais provável eu bater o carro em algum poste e aí eu mesmo me machuco. Quanto a machucar alguém, é mais provável que eu faça isso indo para o trabalho de manhã do que voltando de uma festa de noite”, argumenta. >
O presidente da Associação Brasileira de Medicina do Tráfego (Abramet), Antônio Meira Junior, alerta que o estado de saúde do motorista é um dos principais fatores capazes de causar ou agravar sinistros de trânsito e que a atenção e a capacidade de tomada de decisões são elementos fundamentais para a direção. >
“A diminuição da capacidade de processamento de informações já começa com uma alcoolemia muito baixa. O álcool reduz a capacidade de percepção da velocidade e dos obstáculos, reduz os reflexos e reduz a habilidade de controlar o veículo. Além disso, diminui visão periférica e barreiras morais, junto com autocrítica. O condutor acaba fazendo o que não deveria ao volante, como a adoção de alta velocidade, negligenciando os riscos”, informa. >
O que dizem os números >
A Transalvador registrou, em 2024, 4.884 infrações pela Lei Seca na capital baiana. Em 2025, até o mês de junho, foram 2.270 infrações por direção sob efeito de álcool ou recusa ao teste de bafômetro. Já o Detran Bahia apresenta dados de todo o estado e que somam as infrações aplicadas por todos os órgãos autuadores. Por esse registro, foram 17.924 multas ao longo de todo o ano de 2024 e 12.843 até julho de 2025. >
Tanto o ato de dirigir sob efeito de álcool quanto o de se recusar a passar pelo teste do bafômetro são considerados como infração gravíssima, provocando a perda de sete pontos na carteira, retenção do veículo, suspensão do direito de dirigir por 12 meses e uma multa de R$ 2.934,7. O valor a ser pago será o dobro caso o motorista seja reincidente da mesma infração em menos de um ano. >
Caso o teste do bafômetro aponte que o motorista tem mais de 0,3 miligramas de álcool por litro de ar alveolar (sem a margem de erro), a infração será também considerada crime de trânsito sujeita à detenção de seis meses a três anos. Os dados da Transalvador apontaram que os casos de crime foram diminuindo ao longo dos anos, passando de 24 em 2021 para nove em 2024. >
As recusas do bafômetro, por outro lado, cresceram e representam a maioria dos casos, mascarando as ocorrências. Em 2021, das 2.751 infrações, 2.491 foram por recusa. Em 2024, foram 4.831, das 4.884 totais. As porcentagens saíram de 90% para 99%. >
Fugindo do bafômetro >
A fuga do bafômetro é um dos destaques do relatório da Senatran. De 2008 a 2025, dos 3,2 milhões de casos de direção sob efeito de álcool no Brasil, 2,1 milhões foram por recusa, o que representa 65%. Na Bahia, foram 107.752 casos totais e 96.538 recusas, ou seja, 89%. >
O Superintendente da Transalvador, Diego Brito, diz que a fuga do bafômetro é adotada por motoristas que bebem e sabem que, ao soprar, o equipamento vai acusar a presença de álcool, configurando crime e, não mais, somente infração. Fabrizzio Muller lembra que o agente de trânsito ou policial pode e deve, ao verificar sinais claros de alcoolemia no motorista, conduzi-lo à delegacia, independentemente da recusa do bafômetro. >
Muller destaca que a possibilidade de aplicação de multa de mesma penalidade tanto para a direção sob efeito de álcool quanto para a recusa do bafômetro já foi um grande avanço, mas outros devem ser alcançados. O motorista Rafael, citado no início da reportagem, conta que foi pego na blitz, não fez o bafômetro e apenas pagou a multa, sem ter tido o direito de dirigir suspenso, como prevê a lei. >
O assessor da Diretoria Geral do Detran Bahia, Cléser Costa, reforça que é competência de todos os órgãos autuadores responder pela aplicação correta da lei, em diálogo direto com a Senatran, e que o Detran dá prosseguimento à suspensão do direito de dirigir de motoristas autuados pelo órgão. A Transalvador disse que passa ao Detran informações sobre penalizações aplicadas e que estuda formas de integrar-se ao sistema da Senatran para também utilizar este canal para as penalizações. >
Em busca de solução >
O Superintendente Diego Brito defende que a Lei Seca funciona e trouxe muitos avanços importantes. “Tem uma mudança de comportamento que é perceptível, além da diminuição de sinistros, principalmente, fatais, envolvendo álcool e direção”, diz. Sobre a permanência dos casos mesmo com os avanços, ele acredita ser uma questão de educação. >
“É difícil educar uma pessoa mais velha. Um adulto já tem suas questões, seus pensamentos. Quem continua bebendo e dirigindo é alguém que paga para ver. É uma pessoa que só vai parar quando um acidente acontecer com ela mesma ou alguém próximo. Por isso, é uma educação que tem que vir desde criança mesmo”, coloca. >
Ele destaca que a Transalvador realiza campanhas e blitze todos os dias, em diferentes pontos da cidade, com reforço aos finais de semana. “A gente só tem dificuldade de chegar a pontos mais periféricos, por questões de segurança”, afirma. >
Diego compartilha que as blitze costumam acontecer entre 22h e 5h, considerando o período em que os motoristas voltam de bares, festas e confraternizações que envolvem ingestão de álcool. O acidente com o maratonista na orla da Pituba no último fim de semana aconteceu por volta das 6h. “Já ampliamos para até 7h, mas, com base nos dados, vimos que não fazia sentido manter essa ampliação por conta do número insignificante de abordagens e retornamos para até 5h”, explica. >
O superintendente diz ainda que, em 2025, as campanhas de trânsito tiveram como foco os acidentes envolvendo motociclistas e, não, direção e álcool, devido ao aumento dos primeiros casos. “Voltamos nossas ações agora para os motociclistas porque entendemos que a Lei Seca e nossas ações de combate têm surtido efeito”, finaliza. >
Para Fabrizzio Muller, “a população não está preparada para que haja flexibilização dessas regras e das fiscalizações”. Ele defende que é preciso insistir no aprimoramento das punições. “A impunidade é um dos principais fatores para a perpetuação disso. Quem dirige um veículo consumindo álcool sabe que dificilmente vai responder por isso”, opina. >
Outro fator de destaque para ele é a existência de aplicativos e grupos de WhatsApp que compartilham informações sobre as localizações das blitze e são alimentados pela própria população. “Esse corporativismo entre as pessoas existe e precisa ser combatido de alguma forma. Mal sabem essas pessoas que elas mesmas que contribuem com isso podem ser vítimas de um condutor sob efeito de álcool”, finaliza. >