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Moyses Suzart
Publicado em 23 de agosto de 2025 às 05:00
O espírito de Alexandre já virou até figurinha no Whatsapp como forma de comunicação para quem quer incentivar uma confusão nos grupos. Personagem da novela A Viagem, reprisada pela sexta vez na Globo, este espírito obsessor pode ter se tornado um meme, mas também voltou a despertar na cabeça de boa parte das pessoas sobre a vida após a morte. Ou melhor: até onde quem morre pode estar entre nós, inclusive nos atrapalhando. Será que uma mudança de comportamento repentina de alguém é alguma alma perdida destilando ódio no seu cangote ou se trata apenas de uma saúde mental deteriorada? Pode ser, inclusive, que o encosto seja a própria pessoa, a verdadeira imagem do mal. Afinal, a culpa é de quem? >
O enredo da novela trata os espíritos sob a visão do espiritismo. Contudo, muitas religiões possuem seus conceitos sobre entidades de outros planos que nem sempre são amigáveis. Seja espírito obsessor, Eguns desorientados, assombrações, encostos, seres hostis, demônios, satanás ou Mara Devaputra, todos possuem peculiaridades e até semelhanças, mas todos se esbarram na barreira da ciência. >
Há uma linha tênue entre religião e método científico, principalmente na identificação de um determinado caso dentro de uma sociedade em que 1 bilhão de pessoas sofram com algum transtorno mental, segundo a OMS. Como diferenciar influência espiritual de uma neurose? Voltemos à novela. Curiosamente, o personagem vivo que descobre sobre as peripécias de Alexandre é Alberto, médico e espírita. Nesta guerra fria entre doenças da mente e desencarnados, há quem entenda que, apesar da distinção de metodologia, um pode ajudar o outro. >
“A obsessão psicológica é a base causal da obsessão espiritual: ideias fixas, ruminativas, repletas de afetos ruins, tais quais a mágoa, remorso, rancor, ódio... Os obsessores são apenas pessoas sem corpo que vivem essas emoções e alimentam esses pensamentos, aliando isso a intenções mais ou menos infelizes”, compara Danilo Cruz, psicólogo, professor e espírita. Ele foi orientando de André Luiz Peixinho, que foi médico, psicólogo e um líder espírita em Salvador, até desencarnar em 2024. >
Como profissional da psicologia, Cruz não mistura as coisas. Mas isso não significa que não possam andar em conexão. Para ele, cada tratamento é único e multidisciplinar. Aos poucos as coisas estão se misturando, de fato. Ou se ajudando, ao menos. Existe, inclusive, um ramo da ciência que tenta explicar como a religião pode influenciar no cérebro. É a chamada neuroteologia. >
O primeiro cuidado de Cruz é diferenciar justamente o fanatismo do lado psicológico. Assim como outros profissionais, saber a religião da pessoa é fundamental na maioria dos casos. A partir daí, é possível utilizar a religiosidade em prol do tratamento. Para ele, assim como a ciência não pode descartar a influência espiritual no comportamento humano, a religião também não pode excluir a importância do estudo científico. >
“O fanatismo pode distorcer a realidade, levando a um agravamento do quadro, tornando ainda mais difícil um tratamento que já é bastante desafiador. Por isso, as instituições religiosas sérias, nos mais variados matizes, de quaisquer expressões religiosas, sugerem o tratamento integral do indivíduo nos níveis médicos, psicológicos, sociais, funcionais e espirituais. Nenhum tratamento prescinde dos outros”, assegura. >
O grande desafio é justamente separar e identificar se, de fato, é um Alexandre atazanando o juízo da pessoa ou é uma distorção da realidade. >
“Primeiro é preciso averiguar se não é um caso de delírio, uma ruptura com o juízo de realidade. Tem gente que interpreta equivocadamente que está sendo influenciada por entidades espirituais, quando na verdade está criando uma realidade paralela. Então, é importante pesquisar sobre os motivos que levaram essa pessoa a acreditar-se vitimada por essas influências [os espíritos obsessores]”, explica Cruz. A partir desta identificação, segundo o psicólogo, será possível traçar estratégias de mudança de padrão de pensamentos e sentimentos que possam estar "abrindo a porta" para essas influências negativas.>
A própria psicologia fala de espíritos como referência no DSM-5, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. A “bíblia” da psicologia. O livro associa o lado espiritual quando fala sobre o transtorno dissociativo de identidade. “A forma de possessão do transtorno dissociativo de identidade manifesta-se, em geral, como comportamentos que surgem como se um espírito, um ser sobrenatural ou uma entidade externa tivesse assumido o controle, de tal forma que o indivíduo começa a falar e agir de maneira claramente diferente”, descreve o livro, que completa: “Pessoas com esse transtorno podem se apresentar com sintomas neurológicos proeminentes clinicamente inexplicáveis”. >
Para explicar melhor como é feita esta diferenciação, vamos pensar no Téo, personagem de Maurício Mattar em A Viagem. Ele acaba namorando com a ex-namorada de Alexandre quando estava vivo. Por vingança, o encosto começa a influenciar no comportamento de Téo, que fica transtornado e começa a ter comportamentos psicóticos. Depois de inúmeros tratamentos, o especialista (Alberto) que também trabalha o lado espiritual consegue identificar que é algo além da caixinha científica. >
“A primeira coisa que faço é identificar a religião da pessoa, pois isso orienta a abordagem espiritual. Se a pessoa é evangélica, nunca toco em assuntos ligados ao espiritismo; oriento-a a frequentar a sua igreja. Para católicos, sugiro assistir mais missas e ler a Bíblia. E assim vai. Essa metodologia respeita a fé e a abertura espiritual de cada um, garantindo que o tratamento seja eficaz e adequado”, explica a psicoterapeuta transpessoal, Maria das Graças, também espírita há mais de 40 anos. >
A diferença é que, além de tratar Téo, Maria também trata Alexandre. Isso, claro, quando troca o consultório pelo Centro Espírita. Neste caso, o vivo incomodado não seria o foco, mas o espírito obsessor. Segundo Maria, o objetivo é tratar o espírito para que ele se desligue de padrões negativos e encontre um caminho de cura, sem focar apenas no encarnado que sofre. A maldade de Alexandre, neste caso, é um sentimento obsessor. Inclusive, muitas vezes a obsessão não é vingativa. Pode ser muito amor, por exemplo. >
“No centro, uma pessoa comentou que tinha dificuldade em arranjar um namorado. Estava há cerca de sete anos sem conseguir alguém, sentindo muita solidão. Durante uma sessão, um espírito se manifestou: ‘Ela vai arranjar namorado? Vai não, ela é minha namorada. Eu amo aquela mulher desde sempre. Outro dia apareceu um engraçadinho querendo tomar o meu lugar. Dei um chega pra lá’. Tivemos que tratar isso”, lembra. >
Maria também teve uma experiência própria, demonstrando que a influência do apego pode ter uma via contrária. Quando sua avó morreu, ela ficou triste e decidiu colocar uma foto de sua vozinha no guarda-roupa, na altura dos olhos. Todo dia quando abria para se arrumar, conversava com a foto. Um mês depois, sua filha contou sobre um sonho que teve. “ela me disse: ‘Mãe, sonhei um sonho estranho com bisa. Ela me pedia para tirar ela de dentro do guarda-roupa urgente’. Foi aí que percebi o tamanho do meu egoísmo. Estava tentando aprisionar uma memória, sem imaginar que isso poderia incomodar o espírito dela”, completa. >
Nas religiões de matriz africana, os espíritos obsessores podem ser conhecidos como eguns ou encostos. O conceito se assemelha ao espiritismo. De forma simples, são ‘almas’ desencarnadas que não encontrou a sua morada, ficam perdidos na terra, vagando. Segundo o Candomblé, ele se aproxima de quem está vulnerável. “Nem todo espírito que se aproxima é mau, mas se ele vem com dor, com sofrimento, ele pode trazer desequilíbrio. O egum se alimenta da energia que a gente emana. Se você vibra tristeza, raiva, rancor, ele se conecta nisso”, resume Pai André Nery, do Candomblé. >
“A Umbanda entende que espíritos obsessores são Eguns que se apegam a pessoas ou lugares, causando desequilíbrio. Eles são vistos como espíritos que estão em sofrimento e ainda apegados ao mundo físico por questões não resolvidas do passado”, complementa Pai Gibran, da Umbanda. >
Desde a fundação da Igreja Católica Apostólica Romana, ou até antes disso, espíritos obsessores são assuntos importantes ao longo da história. Contudo, não segue a mesma metodologia do espiritismo. Entre os cristãos, dois seres do além podem atrapalhar nosso sossego: assombrações e demônios, este último sem salvação, a própria face do mal. E se for para cuidar do tinhoso, só tem uma solução: exorcismo. >
Para se ter uma ideia de como isso é levado a sério, no período do papa Cornélio, em 251 d.C, um relatório sobre a igreja de Roma constava 46 sacerdotes e 52 exorcistas. Eram mais padres especializados em exorcismo do que celebrando missas. Contudo, o processo é bem cuidadoso. Reformado em 1999, o Rituale Romanum, um tipo de guia católico, tem uma seção somente para a prática, com mais de 90 páginas. >
Antes de tudo, o exorcista precisa ser cético e utilizar todos os meios científicos antes de escolher exorcizar, que é tirar o demônio do comando da pessoa. “Partimos do princípio de que o comportamento estranho ou de aparência demoníaca é, com toda a probabilidade, causado por alguma doença [psicológica]. Empregamos os serviços da equipe médica e de especialistas em psicologia para entender e diagnosticar a origem do comportamento de um indivíduo”, explica o padre e exorcista Carlos Martins, autor do livro Exorcista – Os Arquivos Secretos.>
Em seu livro, Carlos diferencia demônios de fantasmas assombrados. A segunda se aproxima muito do espírito perdido, que necessita de ajuda, diferente do satanás. >
“Os fantasmas são reais. Eles não são apenas tema de filmes de terror ou de livros de ficção. Embora a Igreja Católica não tenha um ensinamento definido sobre fantasmas, teólogos católicos altamente respeitados sustentam que os espíritos que vagam pela Terra – e que ocasionalmente podem ser vistos – são almas de humanos falecidos que estão passando pelo Purgatório”, descreve na obra.>
A assombração, mesmo que seja algo menos perigoso que o demônio, assusta. Segundo a igreja católica, são eles que transformam uma casa em mal-assombrada ou praticam o fenômeno poltergeist, que são vultos, vozes e objetos movidos. “Mas, embora isso possa deixar a pessoa assustada, um encontro com um demônio deixa qualquer um aterrorizado”, pondera o exorcista. >
Independentemente da religião, o seu encontro com o espírito obsessor depende de um detalhe: sintonia. De todas as fontes que conversamos, foi unânime: você atrai aquilo que transmite. “A mente do desencarnado se conecta com a mente do encarnado. Se você tem pensamentos negativos, ele se conecta nisso. Eles conseguem estabelecer sintonia com você. Por outro lado, se você acumula virtudes, faz caridade, carrega o bem, um espírito negativo não consegue se aproximar”, completa a psicoterapeuta transpessoal, Maria das Graças. Se você não quer nenhum Alexandre no seu cangote, é bem simples: reveja suas atitudes…>