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Da Redação
Publicado em 19 de julho de 2009 às 10:13
- Atualizado há 2 anos
Ligações telefônicas gravadas confirmam o preconceito. O atendimento a portadores do vírus HIV em clínicas odontológicas de Salvador é mais complicado do que se imagina. >
'Por favor, vocês atendem pacientes com Aids?' A pergunta parece simples, mas a resposta muitas vezes é seguida de rejeição. 'Não, senhor... ' Sem que se identificasse, o CORREIO gravou conversas com 60 clínicas odontológicas particulares nos diversos bairros da capital baiana. Em 17, recebeu negativa para atendimento de soropositivos. >
A amostra corresponde a mais de 28% do total. A maioria das unidades se diz despreparada e insegura para realizar a tarefa. A situação não é diferente em postos de saúde. Uma pesquisa realizada no final de 2008 mostra que mais de 80% dos dentistas do serviço municipal se declaram despreparados para atender pacientes com Aids, como se os casos merecessem atenção diferenciada. >
Não merecem, atesta o serviço de odontologia do Centro Especializado em Diagnóstico, Assistência e Pesquisa (Cedap), órgão da Secretaria Estadual de Saúde (Sesab) referência em doenças infecto-contagiosas. O serviço se encontra “inchado” por conta das negativas de clínicas particulares e unidades públicas de saúde bucal. >
Tanto que a rejeição dos profissionais aos portadores de HIV não chega a ser uma surpresa para o Cedap. É para lá que as clínicas e postos de saúde aconselham que esses pacientes se encaminhem. >
O problema revela o medo e a desinformação, injustificáveis entre profissionais de saúde. Tecnicamente, o estigma que o HIV provoca entre os odontologistas não tem argumento plausível. “Aids não tem cara. Os cuidados devem ser para todos. Temos que partir do princípio que todo paciente é potencialmente infectante”, argumenta o coordenador do serviço de odontologia do Cedap, o dentista Samir Dahia. >
“Quando rejeitados, os pacientes HIV acabam batendo à nossa porta. Além de lotar a assistência, a própria negativa cria um trauma no paciente”. Em 2009 está completando 25 anos que o primeiro caso de HIV foi identificado na Bahia. >
A essa altura, diz o dentista, não haveria motivo para que o medo da contaminação supere a obrigação de se realizar o atendimento num consultório odontológico. Até porque, se respeitadas as normas de segurança, os riscos de infecção são mínimos. >
Consultado pelo CORREIO, o Conselho Regional de Odontologia da Bahia (Croba) confirmou a obrigação das clínicas em atender qualquer paciente. No mínimo, revela o conselho, elas ferem o código de ética da profissão. “Se eles não podem atender pessoas com HIV, não podem atender ninguém”, atesta a conselheira Marilene Sant´Ana. >
InfraçãoO conselho de ética do Croba deve avaliar caso a caso as clínicas denunciadas. Pelo código, que regula direitos e deveres dos profissionais, configura-se infração ética (Art. 7º) “discrminar ser humano de qualquer forma ou sob qualquer pretexto”. Por isso, a conselheira avisa. “Todo e qualquer espaço precisa ter condições adequadas de trabalho e respeito às normas”. >
Ao mesmo tempo que os dentistas não podem se recusar a marcar a consulta, o portador do vírus da Aids também não precisa revelar sua condição ao chegar a um consultório. “O dentista é que deve manter o alto padrão de atendimento, respeitando as regras de biosegurança que eliminam o risco da contaminação e melhoram a qualidade de atendimento para todos os pacientes, independentemente da questão sorológica”, acrescentou. >
As organizações que lutam contra a Aids lamentaram a postura das clínicas. O fato de se tratar de profissionais da área de saúde redobrou a indignação do Grupo de Apoio e Prevenção à Aids (Gapa-Bahia). >
“É esse o quadro depois de 25 anos de epidemia.Não se justifica que pessoas que conhecem os riscos ajam dessa forma. O vírus do preconceito se dissemina mais rápido que o da Aids”, avalia o coordenador geral do Gapa, Harley Henriques, baseando-se em dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) para seus argumentos. >
Segundo a OMS, nove entre dez pessoas infectadas pelo HIV não sabem que são portadores do vírus. “Isso quer dizer que, enquanto eles não atendem um paciente que diz ter o vírus da Aids, podem estar aceitando outros nove com a doença. É inacreditável”, explica o coordenador do Gapa. >
Soropositivo não consegue tratamento Portador do vírus HIV, “Francisco” (nome fictício), 44 anos, precisava realizar uma restauração dentária. O CORREIO acompanhou uma de suas tentativas de marcar a consulta e descobriu que, em parte das clínicas, impera o preconceito. >
Auxiliar administrativo, procurou a Cliso Clínica de Saúde Oral da Bahia, localizada em Brotas. Sem plano de saúde, o pagamento seria particular. Antes de expor sua condição de soropositivo (ele não é dos que omitem a sorologia), foi-lhe oferecido horário para as 9h do dia seguinte. Mas, quando abriu o jogo, tudo tomou outro rumo. >
“A nossa administração não permite marcar a consulta, senhor”. O paciente ainda tentou retrucar. “Por que motivo?”. “Não sabemos”. Francisco não insistiu mais. Mesmo acostumado a situações como essa, ficou visivelmente abatido. >
Contactada pelo CORREIO, a dentista responsável pela clínica, Dra. Maria Lucia Luz, usou o argumento da falta de estrutura. “Não temos condições. A nossa clínica é simples”. >
Questionada sobre possíveis pacientes que não anunciem a sorologia ou que simplesmente não saibam que têm Aids, a resposta beira o absurdo. “Aqui trabalhamos confiando em Deus. Rezo muito para que nossos pacientes avisem”. >
Mesmo por telefone, foi possível perceber que era com constrangimento que algumas atendentes, e até dentistas, viam a possibilidade de receber um paciente HIV. Mas, pior do que o mal-estar, só quando ele era seguido da resposta lacônica: “Não, infelizmente, não atendemos”.>
As negativas vinham junto com justificativas vazias, como se as clínicas quisessem se livrar de um “problema”. Fica a pergunta: será que elas estão preparadas para evitar a transmissão de doenças? >
'Para atendê-lo, precisaríamos separar a manhã inteira pra você. Os materiais também teriam que ser separados. Não valeria a pena. A desculpa é de uma atendente da Clidep Clínica Dentária, na Avenida ACM, após consultar o dentista responsável. É complicado, né? Atendemos pessoas aqui com outras doenças e pode ser perigoso pra você'. >
Depois de também consultar o dentista responsável, a Clidente Clínica Dentária, localizada na Avenida Antônio Carlos Magalhães, foi taxativa. 'Não temos uma estrutura adequada'. Mas para se livrar do “fardo”, o mais comum é mesmo a indicação de locais considerados mais “apropriados”, como fez a Clínica Fábio L. Almeida. 'No Creaids (hoje é o Cedep), eles têm material específico. É mais seguro'. >
O mesmo fez a Denteclin, na Avenida Manoel Dias da Silva. 'Procure o Gapa (Grupo de Apoio e Prevenção à Aids). Eles vão te encaminhar'. A Comedi Clínica Odontológica, em Nazaré, também indicou. 'Na Ufba tem atendimento só pra isso'. >
Apesar do nome sugestivo, a Clínica Vida Humana, na Antonio Carlos Magalhães, discriminou. 'De jeito nenhum'. A Clínica Maxi Dente, na Centenário, chegou ao cúmulo. Admitiu não ter o principal aparelho de desinfecção. 'Não usamos a autoclave. Não temos estrutura'. >
Parte das clínicas não apresentou qualquer justificativa. Caso da Cliopi Clínica Odontológica Preventiva Itaigara, que tem como responsável a Dra.Luana Moreira. Sem dizer o porque, simplesmente informou que não atende. >
Outra constatação. É total a desinformação de quem faz o primeiro atendimento. Pelo menos 15 atendentes disseram não saber informar se poderiam marcar consulta para pacientes com Aids. >
Um total de 12 clínicas garantiu o atendimento, mas com alguma restrição. A Clínica Sorriso, localizada no Largo do Tanque, condicionou. 'Precisamos ver o estado do paciente'. A Clínica Patrícia Alves, na Avenida Sete de Setembro, avisou. 'É preciso fazer uma série de exames antes'. >
Bom que se reconheça. A maioria das clínicas não colocou qualquer empecilho para atender paciente HIV. Algumas até se sentiram ofendidas com a pergunta, como a atendente da Clínica de Prevenção Odontológica, na Avenida Sete de Setembro. 'Não temos discriminação. Minha irmã tem HIV e se trata aqui sem qualquer problema'. Resposta semelhante deu a Clínica Odontológica Gastro Dente, localizada na Avenida Garibaldi. 'A Aids não está na cara de ninguém. É claro que avisar antes é melhor, mas temos condições de atender qualquer um'. >
A dentista responsável pela Clínica Odontológica Caroline Rose, em Brotas, criticou os colegas que recusam pacientes HIV. 'Fique sabendo: eles são obrigados a atender'. Já a dentista Cássia Almeida explicou. 'Não tem problema. Não importa o paciente, a esterilização é a mesma'.>
82% dos dentistas inseguros “A sua unidade está preparada, equipada, pra atender ao paciente com HIV/Aids?”. A pergunta foi feita entre julho e dezembro de 2008 a 118 dos 269 dentistas da rede pública municipal. A resposta foi surpreendente. Um total de 82,4% dos profissionais que trabalham em postos de saúde respondeu que não estão preparados. >
Os dados estão numa pesquisa do dentista Samir Dahia (números no topo das páginas), que deverá ser publicada até o fim do ano. Dahia resolveu realizar a pesquisa quando percebeu que a procura ao Centro Especializado em Diagnóstico, Assistência e Pesquisa (Cedap), onde coordena o serviço de odontologia, extrapolou o esperado. >
“O atendimento ‘inchou’ demais. Ao indagar os pacientes, tive uma surpresa. Até as unidades públicas rejeitavam atendimento”. O dentista observa que o Cedap é um centro de referência voltado para casos de complexidade média e alta. “Mandam pra cá simples obturações”. >
Na pesquisa, os problemas de biosegurança foram apontados por 94,8% dos profissionais entrevistados como uma das causas para o despreparo. Já a falta do protocolo de acidentes perfuro cortantes foi citado por 56,5% dos dentistas. >
A própria subcoordenadora de saúde bucal da Secretaria Municipal de Saúde (SMS), Cecília Bião, admite que alguns profissionais têm resistência em atender o paciente HIV, segundo ela, sem motivo. A subcoordenadora garante que todos os postos de saúde são equipados com aparelhos de esterilização e equipamentos de segurança individual. “Se eles acham que estão se protegendo ao negar atendimento, se enganam”. >
Atendimento negadoClínica Maxi Dente - Av. Centenário Clínica Odontomédica - Av. Garibaldi Clínica Odontológica de Roma - Roma Clínica Odonto Laser - Av. ACM Cliopi Clínica Preventiva Itaigara - Av. ACM >
Clios Clínica Odontológica São Caetano>
Cliso Clínica de Saúde Oral da Bahia - Brotas >
Comedi Clínica Odontológica - Nazaré >
Clínica Vida Humana - Av. ACM >
Denteclin - Av. Manoel Dias da Silva >
Clínica Fábio Almeida - Itapuã >
Clínica Dr. Eduardo S. Filho - Sete Portas >
Clidente Clínica Especializada - Nazaré >
Clidep Clínica Dentária - Av. ACM >
Clínica Odontológica Maria Goreth - Liberdade >
Clínica Odontológica da Politécnica - Av. 7 de Setembro >
Clínica Dentária do Cabula - Cabula >
60 clínicas odontológicas particulares de Salvador foram contactadas por telefone pelo CORREIO. As ligações foram feitas durante uma semana, entre os dias 8 e 15 de julho. >
17 estabelecimentos se negaram a atender pacientes com Aids. Ao lado, a lista das clínicasque, pelosmais diversos motivos, fecharam as portas para os soropositivos.>
(notícia publicada na edição impressa do dia 19/07/2009 do CORREIO)>