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Quatro em cada 10 entregadores já sofreram acidente de trabalho em um ano

Estudo liderado por pesquisadoras da Ufba mostrou que acidentes aumentam entre os mais jovens e os que têm jornada de trabalho maior

  • Foto do(a) author(a) Thais Borges
  • Thais Borges

Publicado em 12 de maio de 2025 às 05:00

Em um ano, mais de 40% dos entregadores sofreram acidentes de trabalho
Em um ano, mais de 40% dos entregadores sofreram acidentes de trabalho Crédito: Marina Silva/CORREIO

“Às vezes são mais de 12 horas de trabalho, em cima de uma moto, com a preocupação de atingir a meta. Você se desconcentra. É humanamente impossível não acontecer um acidente. Dirigindo um carro, já é difícil. Imagine numa moto". A reflexão do presidente do Sindicato dos Motociclistas (Sindmoto-BA), Marcelo Barbosa, encontra eco numa realidade cada vez mais exposta em uma das categorias que mais cresceu nos últimos tempos: pelo menos quatro em cada dez entregadores de mercadorias já sofreram acidentes de trabalho no período de um ano.

Se a pessoa for mais jovem ou estiver na labuta por mais tempo, o risco é ainda maior: de 44,1% do total de participantes, os que foram vítimas de acidentes chegam a 54,6% entre aqueles com até 28 anos; a 50% para quem trabalha a jornada máxima de sete dias por semana e a 49,1% entre quem trabalha mais de dez horas por dia.

A situação também é mais comum quando os entregadores atuam com empresas de plataforma de entrega - nesse universo, o percentual é de 51,3%. Os números são resultado de uma das investigações do EpiSAT Entregadores, projeto coordenado pela pesquisadora Rita Fernandes, professora titular da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia (Ufba) e do programa de pós-graduação em Saúde, Ambiente e Trabalho (PPGSat) da instituição.

Esse estudo sobre os acidentes faz parte da tese de doutorado da pesquisadora Janaína Siqueira, orientanda da professora Rita, e tem colaboração com instituições como a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). O artigo com os novos dados foi publicado na revista científica Cadernos de Saúde Pública em março passado.

A maior parte dos acidentes aconteceu justamente no trânsito - o índice chega a 82,8% nesses casos. De acordo com a professora Rita Fernandes, esse resultado é porque é onde os entregadores executam a sua atividade. “Houve um deslocamento enorme da força de trabalho que estava antes somente nos locais típicos - as fábricas, as oficinas, os escritórios - para as ruas. O trânsito se constitui hoje num local de trabalho. Então, é absolutamente necessário que esse local seja pensado no sentido das políticas de proteção da vida e da saúde desses trabalhadores", exemplifica.

A partir de 2016, com o surgimento de plataformas de entrega por aplicativo, o quantitativo de entregadores aumentou no país. Em 2019, uma reportagem do CORREIO mostrou que os profissionais chegavam a trabalhar 14 horas por dia e, no caso dos que usavam bicicletas, pedalar até 80 quilômetros diários.

Em todo o Brasil, diferentes pesquisas têm estimado que o número de entregadores de mercadorias que trabalham em veículos de duas rodas - ou seja, motos e bicicletas - chega a centenas de milhares. Um dos números mais lembrados é o do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que calculou 589 mil pessoas em 2022.

"Conhecer os fatores associados aos acidentes de trabalho e suas repercussões entre entregadores deve possibilitar desenvolver estratégias de vigilância em saúde do trabalhador e subsidiar intervenções com foco na prevenção", escrevem as pesquisadoras da Ufba, em um trecho do artigo publicado em março.

Em um ano, mais de 40% dos entregadores sofreram acidentes de trabalho
Em um ano, mais de 40% dos entregadores sofreram acidentes de trabalho Crédito: Marina Silva/CORREIO

Metodologia

Os dados do estudo foram coletados por quatro meses, tendo começado em fevereiro de 2022. Foi divulgado um questionário em plataformas como Whatsapp, Telegram, Instagram e Facebook, além de terem fornecido o link para o formulário de forma presencial, nas localidades onde os trabalhadores ficam mais concentrados. Ainda que entregadores de todo o Brasil tenham respondido, a divulgação presencial do link ocorreu principalmente em Salvador, mas também houve abordagem em cidades como Lauro de Freitas, Camaçari e Feira de Santana.

Ao todo, 563 entregadores responderam ao questionário de forma voluntária. “Eles foram muito enfáticos em apoiarem a iniciativa, mas também diziam para nós que era difícil que o trabalhador que recebe por entrega parasse para responder um questionário. Isso implicaria no tempo dele de trabalho. Felizmente, a gente teve uma excelente resposta", conta a professora Rita Fernandes.

A maioria dos participantes era homem - 96,3% - e jovem, já que quase 80% tinham menos de 40 anos. Sete em cada dez eram pretos ou pardos. O Nordeste foi a região com o maior número de participantes, com um percentual de 46,2%, seguido pelo Sul e Sudeste (36,5%).

Eles respondiam quantos acidentes de trabalho haviam sofrido, nos 12 meses anteriores. Se marcassem a resposta 'nenhum', seguiam para as próximas etapas do questionário. Ainda de acordo com o artigo, foram consideradas como acidente de trabalho quaisquer situações que levaram a lesões, machucados, traumas ou problemas de saúde.

A professora reforça que acidente de trabalho é todo evento que impacta a saúde do trabalhador durante sua atividade ou deslocamento para o trabalho, independente de ter carteira assinada ou não. Além disso, em março de 2023, a ex-ministra da Saúde, Nísia Trindade, assinou uma portaria que determina que acidentes de trabalho fazem parte da lista de agravos de notificação compulsória, assim como doenças covid-19, raiva, dengue e casos de violência doméstica e sexual.

Isso foi considerado importante por especialistas para orientar a formulação de políticas públicas de prevenção dos acidentes. A subnotificação dos acidentes é outro problema denunciado por profissionais de saúde e pesquisadores.

Um dos aspectos citados pela professora Rita Fernandes para a saúde dos entregadores e para a segurança são políticas de engenharia de tráfego, como assegurar vias preferenciais para motociclistas, tal qual a motofaixa que foi implementada na Avenida Bonocô, em março.

“Isso não é a solução para todos os problemas deles (dos entregadores), mas é para redução de danos. A gente está numa situação tão grave das pessoas se acidentarem, de trabalhadores jovens morrendo no trânsito, que a via preferencial é uma alternativa urgente e da maior importância", analisa.

Em um ano, mais de 40% dos entregadores sofreram acidentes de trabalho
Em um ano, mais de 40% dos entregadores sofreram acidentes de trabalho Crédito: Marina Silva/CORREIO

Pressão

O aumento de acidentes, na avaliação do presidente do Sindmoto-BA, Marcelo Barbosa, é consequência de fatores que vão desde a carga horária até a inexperiência.

“Eles trabalham sob pressão. Usam celular, porque ficam pelo GPS constantemente para fazer a entrega e essa é uma das maiores causas de acidente”, diz.

Além disso, não há formação específica para ser entregador. Os mototáxis regulamentados em Salvador precisam passar por um curso específico, por exemplo, enquanto os entregadores não têm nada parecido.

“A autoescola não forma condutores. São aulas básicas em que a pessoa vai para a rua sem experiência nenhuma. Por isso, a gente luta pela regulamentação desses trabalhadores. Quando eles se acidentam, a família vai passar necessidade, porque não tem nenhuma cobertura. Às vezes, ficam com sequelas, não voltam a trabalhar”.

Ao mesmo tempo, não há nem locais para descanso. Não é incomum que eles fiquem nas calçadas, sem abrigo e até sejam expulsos da frente de prédio por moradores. A entidade já acompanhou casos em que moradores chamaram a polícia para expulsar os entregadores que estavam na rua. “Tenho relato de uma amiga que é entregadora e fala que não consegue nem parar para lanchar. Ela coloca o lanche na mochila e vai pilotando lanchando, porque se não fizer, não bate a meta”.

Rotina

Na pesquisa, os entregadores tiveram que responder a perguntas sobre a rotina no trânsito e nas entregas. Quase todos (88%) afirmaram que usam capacete durante todo o tempo, mas os pesquisadores identificaram que 67,6% admitiram cruzar o sinal vermelho em algum momento. A falta de suporte das empresas que são as plataformas de entrega também foi um aspecto comum, sendo relatada por 83% deles. Outros 72% disseram ter tido conflitos com clientes das entregas e 70,5% com os fornecedores.

A jornada de trabalho também é extensa: sete em cada dez trabalham até a semana inteira por mais de dez horas diárias, enquanto 37,2% trabalharam 12 horas ou mais na semana anterior àquela que responderam a pesquisa. Os acidentes de trânsito são a maioria dos sinistros - 82,8%. As ocorrências afetaram partes do corpo como pernas (27,7%), braços (21,1%), mãos e dedos (19,4%) e pés (16,5%).

“Não é possível que esse trabalhador esteja submetido a uma pressão de tempo a uma remuneração exígua que vai exigir dele a pressa e a correria. Essa intensificação do tempo de trabalho vai acarretar em insegurança, especialmente no espaço de trânsito”, diz a professora Rita Fernandes, da Ufba.

Apesar do trabalho informal, muitos tiveram que se afastar para se recuperar - 56,1% dos acidentados. Dos que levaram 15 dias ou mais afastados, só 20% receberam algum apoio previdenciário. O mais comum é que a família ajudasse a pagar pelas despesas do período. Em geral, esses acidentes também levaram à necessidade de buscar serviços de saúde - majoritariamente públicos (84,8%).

“Esse trabalho se constitui como a fonte principal deles, então não se sustenta a ideia de que é um bico", analisa a professora, ponderando que a remuneração média é insuficiente. “Se ele tem que fazer manutenção da moto, abastecimento com combustível, ele tem custo com essa receita. O que vai ficar por último? O pagamento de algum seguro social", acrescenta, citando outras investigações que analisam até a insegurança alimentar de entregadores.

O grupo de pesquisa dela tem investigado outros temas quanto ao trabalho dos entregadores, a exemplo da saúde mental, da qualidade de sono e dos distúrbios dos músculos esqueléticos. A equipe conta com estudantes de graduação, de mestrado e doutorado, mas também com colaboração de professores de outras instituições, como Guilherme Werneck, da UFRJ, e Francisco Antunes Lima, da UFMG.

Legislação

O debate sobre os direitos dos entregadores cresceu também no Judiciário e no Legislativo. ​​No caso dos que trabalham com aplicativos, eles são considerados trabalhadores autônomos em plataformas digitais, como explica o advogado Washington Barbosa, especialista em Direito Previdenciário, mestre em Direito das Relações Sociais e Trabalhistas e CEO da WB Cursos.

Segundo ele, há uma relação de trabalho, não de emprego - o que torna possível, inclusive, que eles atuem com mais de uma empresa. Por isso, a maior parte da categoria não está contemplada pelo que diz a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). O entendimento é de que as plataformas funcionam como um ‘balcão de negócios'.

“Na verdade, todo e qualquer exercício de atividade remunerada tem contribuição obrigatória para o Regime Geral de Previdência Social, mas que a gente fala comumente INSS. Essa contribuição, ela vai assegurar vários direitos para essa pessoa, desde a aposentadoria, quer seja uma aposentadoria programada, quer seja uma aposentadoria por invalidez", diz, citando casos como pensão por morte, afastamentos e incapacidade temporária de trabalho.

Um entregador pode contribuir como microempreendedor individual (MEI), com desconto de 5% e, de acordo com o advogado, só poderá se aposentar por idade e com o valor de um salário mínimo de aposentadoria. Para ter um valor maior, apenas seria possível se contribuísse como um segurado facultativo ou contribuinte individual - o que leva a descontos de até 20%.

As empresas, por outro lado, não precisam pagar indenização a um profissional que sofre acidente de trabalho. “Elas não têm responsabilidade no que diz respeito ao serviço prestado, muito menos responsabilidade sobre algum problema que haja nessa prestação de serviço, assim como também não tem nenhuma responsabilidade em relação ao prestador de serviço, ao trabalhador autônomo em plataforma digital”.

No ano passado, o governo federal apresentou o projeto de lei complementar 12/2024, para regulamentar o trabalho dos motoristas por aplicativo. “Especificamente, o projeto trata daqueles que são trabalhadores em veículos de quatro rodas. Então, nesse caso específico desse projeto de lei complementar que está tramitando, ele não atingiria os entregadores, que a maior parte utiliza moto, ou seja, só duas rodas”, acrescenta o advogado.