Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Carol Neves
Arthur Max
Publicado em 12 de dezembro de 2025 às 06:02
Há mais de quatro décadas, Pojuca, na Região Metropolitana de Salvador, viveu um dos episódios mais traumáticos de sua história. Em 31 de agosto de 1983, o descarrilamento de um trem da Rede Ferroviária Federal, carregado de gasolina e diesel, provocou a explosão de três vagões e matou 99 pessoas, em um caso que reuniu todos os elementos de uma tragédia anunciada - descaso, omissão, infraestrutura sucateada - e que, mesmo assim, terminou sem que ninguém fosse responsabilizado criminalmente.>
O dia em que a cidade virou um “circo de horrores” >
Ainda era cedo, 6h50 daquela quarta-feira, quando três vagões carregados de gasolina e diesel descarrilaram no km 82 da ferrovia da Rede Ferroviária Federal, quase em frente ao cemitério de Pojuca. A composição havia saído minutos antes do terminal da Petrobras, em Candeias, e seguiria para uma refinaria em Sergipe.>
Quando tombaram, os vagões começaram a derramar 135 mil litros de combustível sobre a linha férrea. O cheiro se espalhou rápido. Em pouco tempo, a notícia correu entre os cerca de 6 mil moradores da cidade.>
Tragédia em Pojuca deixou 99 mortos
Mas a resposta das autoridades foi lenta. A polícia só tomou conhecimento oficial às 7h30 - e, mesmo assim, só tentou agir por volta das 11h. Eram apenas quatro policiais tentando isolar três vagões e uma multidão crescente. Não conseguiram.>
Crianças, adultos e idosos passaram horas retirando gasolina com baldes, garrafas e botijões, levando o combustível para dentro de suas casas. O próprio chão ficou encharcado.>
À noite, às 20h30, o cenário de improviso e negligência atingiu o ápice. Funcionários da Rede Ferroviária tentaram acelerar o transbordo usando uma moto-bomba. A faísca gerada pelo equipamento foi o suficiente para transformar o bairro em uma bola de fogo.>
“Foi uma noite de pesadelo”, contou Antonieta Queiroz do Amor Divino. “Quando atentamos para o que estava acontecendo, só vimos o fogo atingindo a porta da nossa casa e mal deu tempo de sairmos pelos fundos.” Para sobreviver, ela se jogou na lagoa.>
Corpos carbonizados, pessoas correndo em chamas>
O incêndio se espalhou em segundos. Mais de 30 pessoas morreram ali mesmo, carbonizadas. Casas foram destruídas. Outras vítimas tentaram escapar correndo com o corpo em chamas.>
Um ex-delegado que atuou no caso, Ivan das Neves Solon, descreveu assim, anos depois: “Pareciam bonecos queimados, estavam mutilados dos joelhos pra baixo e sem o antebraço.”>
O socorro foi insuficiente e tardio. O número de mortos cresceu nos dias seguintes, chegando a 99 — o maior saldo de uma tragédia já registrada no estado.>
“A cidade inteira virou clarão”: relatos de quem sobreviveu>
Elisete Araújo Gonçalves viu a morte de perto. Ela tinha 23 anos quando o marido, Valdir, a “arrastou” para ver o combustível sendo retirado clandestinamente dos vagões naquela noite.>
Ela conta que, pouco antes da explosão, sentiu o cheiro forte e se afastou porque ficou tonta. Segundos depois, veio o choque maior. “Ouvi um barulho ensurdecedor, vi a noite se iluminar sob forte clarão e senti as pernas em chamas.”>
Correu sem olhar para trás. Nunca mais veria o marido - um dos 99 mortos. No acidente, também perdeu o cunhado, Carlos Augusto, de 17 anos. Passou duas semanas internada em Salvador, com queimaduras graves, enquanto tentava compreender que agora teria que criar sozinha os três filhos pequenos.>
A tragédia destruiu vidas em instantes - e famílias inteiras foram desfeitas.>
Uma cadeia de falhas: sucateamento, omissão e horas seguidas de irregularidades>
A investigação da época revelou um encadeamento de falhas que, somadas, criaram o cenário perfeito para o desastre. A linha férrea já apresentava sinais evidentes de deterioração: dormentes apodrecidos e soterrados sob pedras britadas, trilhos mal fixados, tortuosos e desalinhados, compondo um trecho que técnicos descreveram nos laudos como de “péssimas condições”, capaz de provocar “um desequilíbrio dos carros do comboio”. Enquanto a infraestrutura se deteriorava, o maquinista Deraldo José Nascimento seguia em uma jornada exaustiva. Embora escalado para oito horas de trabalho, já acumulava cerca de quinze quando o trem descarrilou, segundo relatos de ferroviários.>
A negligência também alcançou quem deveria garantir a segurança do local. O inquérito policial atribuiu à Subunidade de Engenharia de Segurança do Trabalho da Rede Ferroviária omissão grave. A conclusão da investigação afirmou que cabia à engenheira da Subunidade de Engenharia de Segurança do Trabalho isolar a área logo após o descarrilamento, mas essa providência não foi tomada. A profissional demonstrou “total ausência e omissão (…) antes, durante e após o acidente”. Em seu relatório, o delegado Solon foi ainda mais direto ao registrar que “nem mesmo depois do incêndio (…) a aludida engenheira arredou-se dos cômodos e deveras comprometedores braços da indolência”.>
A essa sucessão de falhas somou-se o atraso no acionamento do Corpo de Bombeiros, que só recebeu o chamado às 21h, cerca de meia hora depois da explosão. Por fim, a Polícia Técnica identificou que a faísca gerada pela moto-bomba utilizada por funcionários da Rede Ferroviária funcionou como gatilho final da tragédia.>
Responsabilização civil, mas impunidade criminal>
A Rede Ferroviária Federal S.A. foi responsabilizada civilmente e pagou indenizações às famílias - muitas delas contestadas judicialmente. Mas, no campo criminal, ninguém foi punido. Sete pessoas foram denunciadas pelo Ministério Público por homicídio culposo. Nenhuma foi julgada.>
A ação penal chegou à Justiça em janeiro de 1985. Depois, parou e acabou prescrevendo. Em novembro de 1994, foi arquivada definitivamente.>
A juíza responsável escreveu: “lamentável e infelizmente, outra opção não resta (…) a não ser reconhecer os autos da prescrição, (…) como efetivamente declaro extinta a punibilidade”.>