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Monique Lobo
Publicado em 5 de junho de 2025 às 05:45
Até a década de 1970, o mundo inteiro acreditava que os primeiros homens a chegar no continente americano tinham feito isso há cerca de 11,5 mil anos, vindos da Ásia e cruzando a pé o estreito de Bering, uma passagem entre a Sibéria e o Alasca, até chegar ao Norte da América. Essa teoria, baseada no paradigma de Clovis First, proposto por arqueólogos dos Estados Unidos na década de 1930, dominou a ciência até que uma brasileira de Jaú, em São Paulo, embarcou em uma missão rumo a São Raimundo Nonato, cidade localizada no estado do Piauí, dentro do Polígono das Secas no Nordeste. A mulher era Niéde Guidon, arqueóloga, pesquisadora e professora que faleceu na madrugada desta quarta-feira (4), aos 92 anos. >
O que Niéde encontrou nos sítios arqueológicos da Serra da Capivara mudou a perspectiva de como o continente foi povoado. “Na Sorbonne nos ensinavam que a arte rupestre das Américas era muito primitiva, parecia desenho de criança. Mas o que eu via nos paredões piauienses eram criações fantásticas, complexas, com perspectiva, e contavam muito sobre o homem pré-histórico que vivia aqui”, contou a arqueóloga em entrevista à Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham), entidade civil e sem fins lucrativos criada por ela para garantir a preservação do patrimônio cultural e natural do Parque Nacional Serra da Capivara. O parque, por sua vez, também foi criado, em grande parte, graças ao trabalho liderado por sua guardiã. >
A complexidade descrita por Niéde foi encontrada em pinturas rupestres e restos de carvão e ferramentas que datam de 32 mil a 58 mil anos atrás. Em 1991, através de suas pesquisas, ela apontou que os indícios podiam chegar a cerca de 100 mil anos. Além do período, muito anterior ao que até então era conhecido, o caminho encontrado pela arqueóloga para a chegada dos primeiros homens americanos também foi outro. Segundo ela, os homo sapiens vieram da África para a América. Por conta de uma grande seca, eles atravessaram o oceano Atlântico em busca de comida e foram empurrados para a região Sul do continente por tempestades. >
“O mar estava então 140 metros abaixo do nível de hoje, a distância entre a África e a América era muito menor e havia muito mais ilhas”, explicou Niéde durante uma palestra em São Paulo, em maio de 2008, registrada pela Revista Fapesp. Além disso, os vestígios de esqueletos encontrados no Piauí tinham características morfológicas semelhantes às dos povos africanos e aborígenes, e não dos povos asiáticos, que atravessaram o estreito de Bering. >
Essa descoberta colocou a Serra da Capivara e o estado do Piauí no mapa da arqueologia mundial. “Apenas na minha primeira visita, em 1973, encontramos 55 sítios com pinturas rupestres”, contou, em entrevista à revista Pesquisa FAPESP, em 2013. Ao todo, 1.354 sítios arqueológicos foram catalogados e juntos formam a maior concentração de vestígios ancestrais do mundo. >
Enfrentou questionamentos sobre o seu trabalho por décadas, especialmente de pesquisadores dos Estados Unidos. Mas, a partir do início dos anos 2000, com a confirmação da autenticidade dos artefatos encontrados por ela, sua tese ganhou mais força. Um dos nomes mais respeitados da arqueologia brasileira, Walter Neves, que passou anos questionando as descobertas de Niéde, disse, em 2010, que estava 99,9% convencido da consistência delas. “A felicidade demanda coragem. E, se ela tem um nome, deve ser Niéde Guidon”, falou em entrevista à Folha. >
Corajosa e combativa>
Dos 92 anos de vida de Niéde Guidon, boa parte deles foram dedicados à proteção e preservação do Parque Nacional Serra da Capivara. Em 1991, o espaço foi reconhecido como patrimônio cultural mundial da humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). >
Em um país com a história tão enraizada no coronelismo, ousar proteger um espaço de mais de 91 mil hectares é quase uma sentença de morte. E ela sofreu muitas ameaças. Em 2005, por exemplo, revelou que ela e o chefe do parque tinham sido jurados de morte. “O chefe do Parque Nacional me transmitiu que nós dois estávamos marcados para morrer, que ouviu isso em um comércio local”, falou, em entrevista por portal de jornalismo ambiental O Eco. >
No mesmo ano, contou que tinha recebido ligações de madrugada com novas intimidações. “As pessoas que estão telefonando dizem que vão arrebentar tudo. Como tudo o que tem aqui é do governo federal, avisei das ameaças ao ministro Gilberto Gil [então ministro da Cultura]. O que tenho aqui são meus cachorrinhos, que estão espalhados na casa de amigos’, explicou, em entrevista ao O Globo. >
As intimidações teriam assustado qualquer um no seu lugar. Mas, uma das suas características mais marcantes era a braveza. Certa feita, descobriu que um político da região tinha contratado um matador para assassiná-la. “Eu fui na casa do político, porque me avisaram que ele estava contratando alguém para me matar. Fui a casa dele e falei: ‘Eu sei que você está procurando alguém para me matar. Você vai conseguir, sem dúvidas. Só que eu quero te avisar que eu tenho amigos no Rio de Janeiro que já foram lá numa favela e contrataram uma pessoa que, se eu morrer, virá aqui e irá matar toda sua família’”, revelou com bom humor em entrevista ao programa Conversa com Bial, em 2019. >
Apesar disso, não houve batalha mais difícil para a arqueóloga do que a que acontecia no campo político. A falta de recursos constantes ameaçou algo mais importante para ela do que a própria vida: o Parque Nacional Serra da Capivara. “O parque é um parque nacional, quer dizer, é obrigação do governo federal mantê-lo”, disparou Niéde, em entrevista à Agência Brasil, em 2016. “Não tem dinheiro, o problema é esse”, acrescentou. Segundo ela, na época, a Fumdham, que tinha 270 funcionários, passou a ter apenas 30. Das 28 guaritas de proteção do parque, somente seis tinham profissionais. >
Antes, durante seis anos, até 2015, o parque ficou sem receber nenhum dinheiro do Governo Federal, segundo revelou a arqueóloga. Os portões chegaram a ser fechados por falta de recursos. “A falta de dinheiro é nossa principal e constante ameaça”, lamentou, em entrevista à própria fundação. >
Nesta quinta-feira (5), o parque completa 46 anos resistindo, como era da vontade da sua guardiã. Só em 2024, quase 40 mil pessoas visitaram o local e conheceram um pouco do maior tesouro arqueológico brasileiro. >
Niéde Guidon: a guardiã do Parque Nacional Serra da Capivara